O Supremo Tribunal Federal (STF) deu início, na tarde desta quarta-feira (30/03), ao julgamento inédito do “pacote verde” de ações relacionadas ao meio ambiente. A sessão continuou ontem e será retomada na próxima quarta (06/04).
Sete ações estão na pauta de discussões e dizem respeito a atos e omissões do governo federal que levaram ao desmonte das leis ambientais brasileiras, à desproteção do meio ambiente como um todo e, em especial, da Amazônia.
O julgamento de agora é considerado histórico para o Direito ambiental do Brasil e para a litigância climática internacional. As ações foram pautadas a pedido da ministra Cármen Lúcia, relatora de seis das sete ações.
O estado de coisas inconstitucional já foi reconhecido pelo Supremo em uma ação julgada em 2015 que tratava da condição do sistema carcerário brasileiro. É um instituto no qual se reconhece, segundo o próprio STF, “uma situação de violação massiva e generalizada de direitos fundamentais que afeta um número amplo de pessoas”.
Em suas declarações em plenário nos dois dias das sessões de julgamento, Cármen Lúcia fez seguidas críticas à condução da política ambiental pelo governo.
Nesta quarta, ao iniciar seu voto, mencionou uma fala do ministro Paulo Guedes (Economia) de que o Brasil é um “pequeno transgressor” ambiental e que “de vez em quando tem uma floresta que queima aqui e ali”.
“A transgressão está confessada. A meu ver não tem muito o que discutir sobre esse tema”, afirmou a ministra do STF.
Também disse que o Brasil tem sofrido um quadro de “cupinização institucional”, que seria uma espécie de corrosão interna e invisível das instituições, sobretudo das que tratam do meio ambiente.
“O que são esses cupins? O cupim do autoritarismo, o cupim do populismo, o cupim de interesses pessoais, o cupim da ineficiência administrativa. Tudo isso ajuda a construir um quadro que faz com que não se tenha cumprimento objetivo garantido, de conteúdo, da matéria constitucional devidamente assegurada”, afirmou a ministra.
“O princípio da proibição de retrocessos que não contém congelamento nem mobilidade estatal proíbe que haja uma reformulação no sentido de desfazer o que já foi conquistado para a garantia do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.”
Os sete processos que pautados representam, segundo Cármen Lúcia, um total de 10% das ações sobre o meio ambiente no Supremo. Eles tratam de ações e omissões do governo federal que, segundo os autores, resultam na destruição do meio ambiente do Brasil.
Antes do início do julgamento, na quarta, a relatora fez um discurso com uma série de recados para o governo Bolsonaro e também para o procurador-geral da República, Augusto Aras.
Como mostrou a Folha, o procurador-geral se manifestou de forma contrária a todos os processos, inclusive a um deles apresentado pela própria Procuradoria-Geral da República. A ministra disse que ficou surpresa com essa manifestação.
“Ninguém hoje em sã consciência, nem o mais feroz escravizador de gentes e de terras, haverá de ter a ilusão de que pode dominar a natureza. Não pode. Eu, desde muito cedo, presidente, escutei que Deus perdoa tudo, o ser humano perdoa às vezes e a natureza não perdoa. Nunca”, afirmou a ministra.
“Nem nos mais tiranos tempos deixaram de comprovar que a natureza cobra a fatura quando ela é maltratada e destratada, e não para apenas os viventes de um tempo, mas de outros tempos”, acrescentou.
Cármen Lúcia disse que a destruição da Amazônia por falta de fiscalização adequada se compara à das instituições democráticas.
Uma das advogadas que se manifestaram a favor das ações para o ministro foi Sandra Cureau, subprocuradora-geral da República aposentada e referência em direito ambiental. Ela defendeu que a proteção da Amazônia também é proteção climática e que se devem reconhecer os deveres estatais neste sentido.
Uma das duas ações julgadas pelo Supremo pede que o governo federal execute fiscalização e controle ambiental “em níveis suficientes para o combate efetivo do desmatamento na Amazônia Legal e o consequente atingimento das metas climáticas brasileiras assumidas perante a comunidade global”.
Os autores também pedem que a União “efetive o plano específico de fortalecimento institucional do Ibama, do ICMBio e da Funai e outros a serem eventualmente indicados pelo Poder Executivo federal”. Essa foi apresentada por PDT, PT, PV, PSB, PC do B, Rede e PSOL.
Foi colocado em julgamento, de forma simultânea, uma ação apresentada pela Rede que pede que seja declarada omissão inconstitucional de Bolsonaro. Ainda pede que seja executado integralmente o orçamento dos órgãos ambientais e a contratação de pessoal para fiscalização ambiental na Amazônia, além de apresentação de um plano de contingenciamento para reduzir o desmatamento aos níveis encontrados em 2011 ou menores.
Aras, ao se manifestar em plenário sobre as ações, defendeu que sejam respeitadas as escolhas do Executivo e Legislativo a respeito dos temas tratados. Ele disse que elas não devem ser entendidas como um desrespeito à Constituição, questões que cabem ao Supremo julgar.
Implicações políticas do julgamento
Especialistas em políticas públicas e clima analisaram as potenciais implicações dessa sessão histórica do STF, que pode se estender por semanas.
Para a Climate Policy Initiative (CPI/PUC-Rio), organização de análise e consultoria em finanças e políticas climáticas, o Brasil tem sofrido com uma “política (anti)ambiental” que deixa no seu rastro impactos sociais, econômicos e ambientais de âmbito local, regional e mundial.
“Com o aumento do desmatamento, o país não cumpre as suas metas nacionais e internacionais, contribui para o agravamento da crise climática, espanta os investidores internacionais, impacta negativamente a exportação de produtos agropecuários”, afirma Cristina Leme Lopes, gerente de Pesquisa do Programa de Direito e Governança do Clima do CPI/PUC-Rio.
A especialista elenca potenciais desdobramentos em caso de julgamento positivo das ações pelo STF, a começar pela responsabilização do governo caso não sejam retomadas as políticas de combate à devastação ambiental.
“Há uma clara sinalização para os mercados e investidores internacionais de que podemos sair dessa crise ambiental, uma sinalização ao poder Legislativo de que retrocessos legislativos não serão permitidos quando claramente inconstitucionais, e um fortalecimento do poder Judiciário como um todo, colocando-o como ator importante na agenda climática ambiental”, avalia Cristina.
Em um documento meticuloso que avalia cada ação “verde” do pacote, o instituto Talanoa, think tank que trabalha com análises técnicas e monitoramentos de políticas públicas, defende que todas as sete ações sejam julgadas procedentes. Na avaliação do instituto, esse desfecho melhoria a reputação internacional do país, que efetivamente avançaria “com políticas públicas que estão há anos escanteadas na agenda governamental e precisam urgentemente entrar na pauta prioritária”.
“Entendemos que o julgamento da procedência das ações poderá gerar efeito positivo sobre o ambiente institucional e de implementação de políticas públicas climáticas e ambientais, com consequente impacto no nível de emissões brasileiras, nesta década”, diz o Talanoa.
Nos próximos dias, o meio ambiente e o futuro do Brasil estarão nas mãos dos ministros do STF. É uma responsabilidade e tanto.
Fontes: Folha SP, ((O))eco, Um Só Planeta, G1.