Pelo segundo ano consecutivo, o Rio Grande do Norte lidera as estatísticas de hectares desmatados para a instalação de empreendimentos de energias renováveis. O município mais afetado no estado é Assú, que também foi o que mais desmatou para esse fim em todo o país em 2024, segundo dados coletados pelo MapBiomas. Por lá, uma comunidade quilombola vê os reflexos da devastação na fauna e flora, além do aumento na temperatura como consequência da perda de mata nativa.
O levantamento do MapBiomas mostra que, dos 3.315,1 hectares desmatados em todo o Brasil para as renováveis, 1.258,1 são oriundos só do RN, o que faz do estado responsável por mais de um terço do desmatamento no Brasil para essa finalidade.
Em Assú, foram 890,2 hectares, bem à frente do município em segundo lugar no ranking, Morro do Chapéu (BA), que perdeu 291,0 ha. O pico aconteceu em setembro de 2024. Antes, em abril, Assú também já tinha registrado a maior supressão com 411,4 hectares.
Morador da comunidade quilombola Bela Vista Piató, em Assú, Edivan Costa Bezerra diz que os impactos ambientais, sociais e climáticos vividos pela população local são grandes. Da BR-304 até o quilombo, segundo ele, são nove quilômetros de desmatamento.
Entre a fauna que compõe a região, estão animais como gato do mato, raposa, tatu, veado, dentre outras espécies.
“Isso praticamente foi extinto”, diz Edivan. “Os que conseguiram escapar estão nas nossas terras”. O quilombola diz até que há casos de moradores que adquiriram depressão e hoje tomam remédio.
“O povo passava e via a nossa mata nativa. Hoje, o que o povo vê só é plantação de placa, que não dá de comer a ninguém.”
Esse complexo próximo a Bela Vista Piató é o Conjunto Fotovoltaico Assú Sol, da ENGIE Brasil, que possui capital francês, que possui 16 parques fotovoltaicos. O investimento, segundo a própria companhia, foi de aproximadamente R$ 3,3 bilhões e capacidade comercial estimada em 228,7 MW. Mas não é o único no município. Assú também abriga o Complexo Solar Mendubim, composto por 13 usinas em uma área de 1,2 mil hectares – o equivalente a 1,2 mil campos de futebol. O investimento foi de R$ 2,1 bilhões, com 531 MW de potência instalada.
Para a professora Jovelina Santos, do Departamento de História do Campus da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) em Assú e integrante do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), no Rio Grande do Norte, o desmatamento atingiu proporções assustadoras.
“No município de Assú, assistimos à natureza em ruínas, pois, para a implantação das usinas solares — no modelo adotado — foi realizada uma verdadeira ação de terra arrasada, promovendo a destruição de toda a floresta existente nas áreas onde essas usinas foram instaladas”, avisa.
A Lagoa do Piató, maior reservatório de água doce do Rio Grande do Norte e símbolo de fartura para o Vale do Açu, já se encontrava enfrentando graves problemas, diz ela, e agora sofreu um outro golpe, “podendo agonizar até a morte com a instalação das usinas solares em suas imediações, caso não sejam diligenciadas ações urgentes.”
“Esse processo tem afetado direitos sociais, ambientais e culturais de toda a sociedade, atingindo particularmente as comunidades que vivem ao seu redor, além de impactar diretamente o território da comunidade quilombola Bela Vista Piató”, afirma.
Por um lado, segundo a professora, o estado do Rio Grande do Norte demonstra ampla disposição para trazer as empresas do setor, fornecendo apoio e ações que transformem o RN em uma grande usina fotovoltaica e solar do Brasil.
“Por outro lado, tem negligenciado o diálogo com amplos setores da sociedade — especialmente aqueles que vivenciam a opressão cotidiana — que apresentam reiteradamente reivindicações para que a nova matriz energética não promova em níveis desumanizadores a injustiça social e ambiental”, aponta.
Santos diz que os movimentos sociais vêm “gritando” contra os prejuízos causados às comunidades tradicionais, aos agricultores familiares e à caatinga.
“Esses gritos estão se entrelaçando e o Movimento dos Atingidos pelas Renováveis ganha paraça e organicidade para fazer as ações necessárias ao enfrentamento das diversas violações de direitos que afligem os territórios.”
Os números de supressões para energias renováveis, de acordo com o MapBiomas, são puxados principalmente pelo Rio Grande do Norte (1.258,1 hectares) e Bahia (1.232,6 hectares). Depois deles, o terceiro estado é Pernambuco, com 296,44 he. Dos 26 estados e Distrito Federal, 19 não registraram nenhum desmatamento para essa finalidade, enquanto oito retiraram mata para as novas energias.
O Relatório Anual de Desmatamento 2024 (RAD 2024) da iniciativa MapBiomas, foi lançado em 15 de maio na sede do Ibama, em Brasília, e revelou que o desmatamento para renováveis desacelerou em todo o país. Em 2023, foram derrubados 4.598 hectares para este fim, contra 3.315 em 2024, uma redução de 27,9%. Embora o fenômeno também tenha sido observado no Rio Grande do Norte, a queda se deu em ritmo mais lento, com redução de 8,1%.
Da mesma forma, considerando todas as fontes de desmatamento, como agricultura, mineração, crescimento urbano, entre outras, o Rio Grande do Norte teve considerável redução na área desmatada entre 2023 e 2024, passando de 9.134,7 para 6.130,3 hectares. A redução de 32,9% também ocorreu em ritmo bem mais acelerado do que quando consideradas somente as supressões de vegetação para fins de produção de energia.
Rani Sousa, integrante do grupo Seridó Vivo, critica a maneira como o governo vem tratando o tema da sustentabilidade sob a justificativa de descarbonizar a economia e a matriz energética, mas que “tem trazido esses impactos ao meio ambiente e também no âmbito social que não são considerados.”
“E é o que a gente vem trazendo há muito tempo, nas nossas discussões, nos nossos debates, e esse dado traz isso de uma forma concreta. Uma energia que é considerada ‘limpa’, entre aspas, renovável, como é, de fato. Mas que traz um impacto ambiental enorme para um bioma exclusivamente brasileiro e que também é tão importante para a descarbonização”, aponta ela, que lembra que a Caatinga é o bioma mais eficiente do Brasil em captura de carbono.
Compensações
De acordo com Edivan Costa Bezerra, da comunidade quilombola Bela Vista Piató, após os impactos causados pela ENGIE, a comunidade se organizou e buscou compensações pelos danos.
“Foi uma luta grande também, porque eles chegavam dizendo ‘nós nunca compensamos nenhum dos nossos projetos com essa magnitude que vocês querem’”, conta.
Após a pressão, a comunidade conquistou alguns avanços, como uma nova unidade de saúde e uma nova escola (“estava em tempo de cair”, diz Bezerra, sobre os dois espaços que já existiam no local), uma nova estrada de nove quilômetros, uma quadra e um trator para a associação de moradores, além da própria sede da associação.
Serra do Mel
Os prejuízos não se resumem a Assú. A comunidade de Serra do Mel, município potiguar com 13 mil habitantes a cerca de 250 km de Natal, processou a empresa francesa Voltalia pelos impactos socioambientais e econômicos causados pelos empreendimentos eólicos no município.
O processo busca a reparação integral dos danos decorrentes dos impactos causados pelos empreendimentos eólicos, abrangendo o reconhecimento de dano moral coletivo ambiental que engloba prejuízos à paisagem, à fauna, à saúde e à produção agrícola familiar, além do dano moral aos produtores, relacionado aos efeitos nocivos à saúde dos moradores. Também é requerida a revisão dos contratos firmados com agricultores familiares, considerados excessivamente onerosos.
Foram instaladas 40 usinas eólicas em Serra do Mel, dos quais 36 já estão em operação. Embora o município tenha se tornado um polo de energia eólica, sua principal atividade econômica, a cajucultura, foi diretamente afetada, assim como os modos de vida e a saúde da população local.
A ação foi movida pela Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Rio Grande do Norte (FETARN), a Central Única dos Trabalhadores do Rio Grande do Norte (CUT/RN) e o Serviço de Assistência Rural e Urbano (SAR).
Fonte: Saiba Mais.
Foto: Acervo Grupo de Estudos em Poder, Estado e Sociedade (Gepes-Uern).
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