Tráfico Made Usa

No dia 21 de fevereiro de 1862 o capitão de navio Nathaniel Gordon foi enforcado nos Estados Unidos, o único americano que sofreu a pena capital por participar do tráfico negreiro. “Por quatro décadas o tráfico foi considerado, por lei, um ato de pirataria, mas até então ninguém havia sido punido. A administração Lincoln virou uma página da história e com esse enforcamento a nossa história não será mais a mesma”, sentenciou um artigo da revista Harper’s Weekly daquele ano.

Gordon era um velho conhecido do Brasil e teve o “privilégio” de comandar, em 1852, o último navio negreiro, o brigue americano Camargo, a desembarcar, com sucesso, 500 africanos em solo brasileiro. Depois de despachar a sua “carga”, Gordon ateou fogo ao navio, para evitar sua prisão (o tráfico estava proibido no país desde 1850), e escapuliu vestindo roupas femininas para os EUA.

Ele não foi, porém, o único americano a bordo de uma embarcação produzida em Baltimore, Maine ou Nova York a aproveitar as vantagens de navegar com a bandeira ianque e lucrar, muito, com o tráfico de negros para o Brasil e Cuba.

Um cônsul americano no Rio de Janeiro, na década de 1840, avaliou entre 70% e 100% a rentabilidade dessas expedições negreiras em navios dos EUA, tanto do Sul escravista quanto do Norte supostamente abolicionista.

Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal Fluminense, com a ajuda de quilombolas da região, localizou, em novembro de 2022, restos de naufrágios de navios escravagistas, na região de Bracuí, em Angra dos Reis, no sul fluminense.

O objetivo de Rambelli era justamente localizar em Porto Bracuí, Angra dos Reis (ao sul do Rio de Janeiro), vestígios do Camargo, o brigue do capitão Gordon. Partindo do relato de mergulhadores locais, que recuperaram lanternas e peças do brigue (mais tarde usadas para decorar um hotel, hoje desaparecido, junto com os artefatos), Rambelli organizou uma expedição para encontrar restos do navio. “Para a arqueologia subaquática é uma cápsula do tempo preciosa, capaz de dar voz àqueles cujo sofrimento foi algo esquecido pela história.”

Registros jornalísticos da época apontam um local para o naufrágio do Camargo, mas a tradição oral dos quilombolas indica uma localização diferente, ainda que na mesma região. Arqueólogos marinhos mapearam toda a região da baía de Bracuí e buscam agora identificar os remanescentes do navio.

“Nós analisamos as estruturas construtivas dos restos da embarcação, que tem características próprias. No caso, um brigue, construído no Maine, EUA, no século XIX, tem assinaturas que o diferenciam de outros construídos em outros locais e épocas”, explicou o arqueólogo Gilson Rambelli, do Laboratório de Arqueologia de Ambientes Aquáticos da UFS.

“Além disso algumas amostras da madeira podem ser analisadas e datadas para uma melhor precisão (a madeira pode ser datada pelo método do carbono 14 e também pela dendrocronologia, que consegue analisar os anéis de crescimento das árvores). As pedras utilizadas como lastro no navio também são estudadas. Além desses aspectos relativos à arquitetura naval, ou seja, aos restos do navio, propriamente dito, outros artefatos porventura encontrados junto ao sítio arqueológico podem servir como balizadores de datações relativas do sítio.”

As embarcações americanas tinham muitas vantagens para o tráfico, pois eram velozes, capazes de despistar perseguidores da Marinha Real Britânica e piratas, além de economizar tempo nas viagens, uma economia essencial de água e suprimentos e, logo, de vidas, no caso a ‘carga perecível’: seres humanos”, observa.

“Do ponto de vista político, o pavilhão americano permitia privilégios, como a não permissão de vistoria a bordo, eliminando o perigo de serem presos pelos ingleses.” Para o pesquisador, a possibilidade de se poder atear fogo a um navio revela o lucro do tráfico, que permitia esse “luxo”, para livrar tanto a tripulação quanto os clientes, poderosos da região, de enfrentar a Justiça. “Angra e Ilha Grande sempre foram paraísos de contrabandistas”, diz Rambelli.

Naufrágios

“Levantamentos históricos mostram que a costa brasileira está repleta de histórias como a do Camargo, ocultas pela história oficial”, afirma o arqueólogo Luis Felipe Freire Dantas, da UFS, que também participa do projeto. “A arqueologia é uma ferramenta política para pensarmos a reparação dos crimes de tráfico de africanos.”

“Do sul fluminense ao norte de São Paulo, toda essa área era de desembarque ilegal, havia pequenos portos por toda a costa, ligados a fazendas de café da região”, explicou a historiadora Hebe Mattos, da UFF.

“Eram locais de recuperação e engorda de escravizados para revenda. Havia também cemitérios de pretos novos. Ou seja, existe também ai toda uma arqueologia terrestre que nunca foi feita. Por isso temos tantos quilombos na costa.”

Em sua trilogia Escravidão, o jornalista Laurentino Gomes demonstra que o Brasil foi, de longe, o principal destino de traficantes de gente. De um total de 12,5 milhões de africanos embarcados para a América, estima-se que praticamente a metade, 5,8 milhões, tenha vindo para o Brasil. O País foi o último a abolir a escravidão, em 1888.

“Entre 1831, ano em que o tráfico foi declarado legalmente proibido, e 1835 entraram clandestinamente no Brasil cerca de 83 mil africanos escravizados. Era só o começo de uma atividade criminosa que se expandiria de forma assustadora nos anos seguintes”, escreveu Laurentino, no terceiro volume de sua obra.

“Entre 1836 e 1840 foram transplantados mais 255 mil escravos, o triplo do período anterior. Outros 400 mil chegariam até 1850, ano da Lei Eusébio de Queiróz, que, pela segunda e definitiva vez, proibiu o tráfico. No total, cerca de 740 mil pessoas contrabandeadas no curto intervalo de duas décadas, sob o olhar cúmplice da polícia e das mais altas autoridades do Império. Entre os anos de 1841 e 1850, nada menos que 88% dos africanos embarcados em navios negreiros para a América tiveram como destino o Brasil.”

Perseguido antes por um navio inglês, Gordon incendiou o navio, prática corriqueira entre outros comandantes americanos de navios negreiros. Valia a pena: um escravo comprado na África por US$ 40 valia em terras brasileiras, cuja produção crescente de café demandava escravos que não mais eram “importados”, de US$ 400 a US$ 1.200. Assim, uma carga de 800 escravos podia render a fortuna de US$ 960 mil: US$ 100, em 1850, correspondem, hoje, a US$ 4 mil.

Pelo menos 430 navios americanos teriam feito 545 viagens escravistas às Américas entre 1815 e 1850, a maioria para Cuba e para o Brasil. Muitos baleeiros foram convertidos em navios negreiros ou serviram como disfarce para americanos traficarem escravos para costas brasileiras.

O último navio americano a transportar africanos para o Brasil foi a escuna Mary E. Smith, que deixou Boston em 1855, com destino à costa do Espírito Santo, onde chegou em janeiro de 1856, carregando 400 negros, traficados da África, a bordo. Um vapor brasileiro, o Olinda, abordou a escuna e o escoltou até Salvador, onde se verificou que havia mais de 70 africanos mortos de doença contraída na viagem.

A população de Salvador entrou em pânico, apavorada com uma possível epidemia. Nas duas semanas seguintes em que a escuna esteve presa mais cem cativos morreram (incluindo o capitão americano). Os tripulantes foram julgados e sentenciados a três anos de prisão, apelando para o cônsul americano Richard Meade. Dom Pedro II chegou mesmo a receber o mais velho dentre eles e concedeu o perdão oficial a todos em 1858.

Fontes: Revista Fapesp, Estadão.

Imagem: Divulgação.