Nem 1988. Nem mesmo 1500. Em meio ao acalorado debate que tomou conta do Brasil nos últimos meses em torno da tese que propõe o estabelecimento de uma data – um marco temporal – para que se defina quais indígenas têm direito à demarcação da sua terra, uma pesquisa científica que acaba de ser publicada traz elementos novos que dão uma ideia do tamanho, e do impacto, da ocupação milenar dos povos originários na Amazônia.
Um mapeamento feito com uma tecnologia conhecida como Lidar estimou a existência de algo entre 10 mil e 23 mil sítios arqueológicos ainda desconhecidos, escondidos sob a densa floresta em toda a Amazônia. São locais onde, por mais de 12 mil anos, viveram sociedades complexas, que construíram estruturas de terra e domesticaram plantas, alterando a paisagem em seu entorno de modo a torná-la mais produtiva. As modificações profundas, feitas entre 1.500 e 500 anos atrás, mas com efeitos de longo prazo, moldaram a floresta à composição que conhecemos hoje.
Os sítios arqueológicos dessa região são chamados de obras de terra, um termo que engloba os mais variados tipos de estruturas construídas na Amazônia, como geoglifos, assentamentos fortificados, montanhas coroadas, monumentos megalíticos, poços e lagoas. Esses sítios antecedem a chegada dos europeus ao continente. A descoberta pode ajudar a entender a influência dos povos pré-colombianos na Amazônia.
“Conhecer o grande número de sítios arqueológicos e as áreas da floresta já modificadas pelo homem é crucial para que se possa estabelecer uma compreensão mais acurada das interações entre as sociedades humanas, a Floresta Amazônica e o clima da Terra”, justificaram os autores no trabalho.
A Bacia Amazônica é o lar de diferentes sociedades indígenas há mais de 12 mil anos. Esses povos criaram estruturas e domesticaram áreas da floresta deixando marcas a longo prazo na composição atual da Amazônia. Ainda assim, a dimensão desses impactos é muito pouco compreendida. A maioria dos sítios fica em locais remotos e escondidos sob a densa floresta.
O trabalho elaborado por 230 pesquisadores, de 156 instituições do Brasil e de mais 23 países, liderado pelos pesquisadores Luiz Aragão e Vinícius Peripato, do Inpe, publicado nesta quinta-feira (5) na revista científica Science, uma das mais prestigiosas do mundo identificou 24 novos sítios arqueológicos por meio de uma tecnologia avançada de mapeamento remoto, que permite enxergar através da floresta. A tecnologia Lidar (Light Detection and Ranging) permite reconstruir as estruturas encontradas na superfície em um modelo 3D com alto nível de detalhamento.
“Investigamos um total de 0,08% da Amazônia e encontramos 24 estruturas jamais catalogadas nos Estados de Mato Grosso, Acre, Amapá, Amazonas e Pará”, explicou Vinicius Peripato.
Dentre as estruturas detectadas estão vilas fortificadas, estruturas de defesa e cerimoniais e geoglifos.
“Considerando a extensão generalizada de locais modificados por práticas de cultivo e manejo pré-colombianas, a Amazônia pode ser vista como um antigo sistema socioecológico, com respostas de longo prazo às mudanças do clima”, continuam.
Eles identificaram também, ao redor desses locais, a ocorrência de diversas espécies de árvores com sinais de domesticação – ou seja, elas foram intencionalmente manejadas para estar mais próximas aos assentamentos, de modo a prover alimento e outros recursos. É o caso da castanha do pará (Bertholletia excelsa), da macaúba (Acrocomia aculeata), do araticum (Annona montana), da pupunha (Bactris gasipaes), do açaí (Euterpe oleracea), entre dezenas de outras.
A partir desse achado, combinado com dados de outros 961 sítios que já tinham sido encontrados anteriormente com metodologias mais tradicionais – por meio de imagens de satélite de alta resolução, em áreas desmatadas –, os pesquisadores desenvolveram uma modelagem que estimou a possível existência de mais de 10 mil estruturas semelhantes ao longo da bacia amazônica.
É a primeira vez que se tenta determinar o tamanho e a escala dessa ocupação humana na região. Só por isso o trabalho já mereceria ser muito bem divulgado.
Ocupação humana na região promoveu modificações profundas, feitas entre 1.500 e 500 anos atrás, que moldaram a floresta à composição que conhecemos hoje
De acordo com a modelagem, a floresta abrigaria de 10.272 a 23.648 sítios arqueológicos ainda a serem descobertos.
“A Floresta Amazônica claramente merece ser protegida não apenas por seu valor ecológico e ambiental, mas também arqueológico e biocultural, que pode ensinar às sociedades modernas como gerenciar os recursos naturais de forma sustentável”, escreveram no trabalho.
Fontes: Estadão, Agência Pública.
Foto: Mauricio de Paiva/Inpe.