Aves x eólicas: o desafio de conciliar energia limpa com preservação na Caatinga

O Brasil já está entre os dez países com maior capacidade eólica instalada; 85% das mais de 10 mil turbinas em funcionamento estão na Caatinga, onde os ventos são ideais para a geração de energia.

Fonte renovável, barata e limpa, a energia eólica tem recebido grandes investimentos e alterações na legislação que facilitam sua instalação – às vezes fazendo vista grossa nos licenciamentos ambientais.

O problema é que muitos parques eólicos são construídos em áreas de vegetação nativa ou onde vivem espécies raras de aves da Caatinga, sujeitas a colisões com as pás das turbinas.

O soldadinho-do-araripe e a arara-azul-de-lear, ambas aves em perigo de extinção, estão entre as que mais correm riscos.

O soldadinho-do-araripe (Antilophia bokermanni) tem um Plano de Ação Nacional de Conservação elaborado só para ele. Esta espécie endêmica da Chapada do Araripe, no Ceará, é realmente única. Desconhecido pela ciência até 1998, apesar das cores contrastantes belíssimas e do topete vermelho dos machos, ele é encontrado apenas em uma área muito restrita, de menos de 50 km², nos municípios de Crato, Barbalha e Missão Velha. A ave faz ninhos próximo a riachos. Por isso mesmo, é chamada de “Guardiã das Nascentes” no semiárido da Caatinga. Estima-se que sua população seja de aproximadamente 800 indivíduos.

De acordo com a legislação ambiental vigente no Brasil, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) exige o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), além de audiências públicas, para plantas eólicas que estejam situadas em “áreas de ocorrência de espécies ameaçadas de extinção e endemismo restrito”, como é o caso do soldadinho-do-araripe.

E vale ressaltar que não é só ele. O estudo elaborado pela consultoria contratada pela Qair cita ainda outra ave em risco de extinção em Missão Velha, o jaó-do-sul (Crypturellus noctivagus).

O perigo mais evidente da presença de turbinas eólicas próximas a áreas de ocorrência de aves ameaçadas é, sem dúvida alguma, a rotação de suas pás, que pode vir a provocar colisões. Estima-se que, nos Estados Unidos, mais de 500 mil pássaros morram por ano desta maneira.

Há ainda o óbito por eletrocussão causado pelo choque com linhas de transmissão, necessárias para levar a energia produzida nessas plantas para outras regiões.

Todavia, o impacto desses complexos não se restringe apenas a acidentes com aves. A construção envolve a supressão de vegetação, a abertura de estradas para a chegada das imensas turbinas e demais equipamentos, por exemplo.

Na Caatinga, os melhores ventos

A região Nordeste é a menina dos olhos do setor eólico brasileiro. Ela concentra 90% desses empreendimentos no país e 85% deles estão na Caatinga, a maior parte no Rio Grande do Norte e na Bahia. Por uma série de fatores, é nesse bioma que está o que se considera o vento ideal para geração de energia – aquele que é mais constante, com velocidade estável e que não muda de direção com frequência.

O segmento eólico é relativamente novo no Brasil e uma legislação específica para o licenciamento foi aprovada em 2014.

“Em geral, as energias renováveis são muito colocadas como solução. E são. Mas entendemos que não da forma como tem sido feita no Nordeste, na Caatinga principalmente. Tem sido de uma forma predatória e muito pouco regulada e preocupada com o bioma e com as pessoas que vivem nele”, critica o biólogo Paulo Marinho, doutor em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e especialista na conservação de mamíferos na Caatinga.

Quarto maior bioma do Brasil, com 860 mil km², a Caatinga tem só pouco mais de 2% de seu território preservado por unidades de conservação de proteção integral, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente de 2020.

Pressão política e vista grossa nos licenciamentos ambientais

Justamente outra espécie endêmica da Caatinga, assim como o soldadinho-do-araripe, está no centro de uma polêmica envolvendo a construção de um complexo eólico, na Bahia, perto do único refúgio da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari). Também em risco de extinção, o mais recente censo, de 2022, apontou que existem cerca de 2,2 mil delas em vida livre.

Foi nas imediações do Raso da Catarina, em Canudos, que a Voltalia decidiu erguer o complexo eólico, com duas usinas e custo estimado de R$ 500 milhões,

A obra já está praticamente pronta, mas descobriu-se que o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) aprovou o projeto da multinacional de origem francesa somente com a apresentação de um licenciamento simplificado, sem o EIA/RIMA.

Com o temor do possível impacto das pás das 80 turbinas eólicas sobre a arara-azul-de-lear – que possui o hábito de realizar longos voos diariamente, de até 80 km, saindo de seu dormitório ao amanhecer e voltando no final do dia –, organizações e comunidades locais entraram com uma ação na justiça pedindo a revisão do licenciamento.

Depois do Ministério Público Federal ter se posicionado pela anulação do licenciamento em março deste ano, no mês seguinte a 3ª Vara Federal Cível e Criminal de Feira de Santana (BA) determinou a suspensão de todas as licenças concedidas à Voltalia.

A Justiça Federal determinou que “seja apresentado e aprovado o competente EIA/RIMA, inclusive com realização de audiência pública, na forma da legislação ambiental pertinente”.

Em nota, a Voltalia afirma que realizou “uma avaliação de risco baseada na observação do comportamento da arara-azul-de-lear em campo por tempo superior ao recomendado pelas melhores práticas internacionais, que concluiu que o risco dos parques eólicos para preservação e conservação da espécie não existe”.

Existe uma pressão em todos os níveis do governo para acelerar o início dessas obras [eólicas]. E ela aumenta a cada nível que desce na escala política para receber esses empreendimentos”, destaca Marinho. “Essa pressão recai sobre órgãos ambientais que muitas vezes precisam produzir parecer no tempo da empresa e não da área técnica”.

Mudanças nas legislações estaduais

O alerta sobre esse tipo de situação não é de hoje. Em 2019, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco divulgou um artigo no periódico Perspectives in Ecology and Conservation intitulado “Verde x Verde: Alerta sobre potenciais conflitos entre geração de energia eólica e conservação da biodiversidade no Brasil”.

Na época, o Brasil era o 8º colocado no ranking global de capacidade eólica instalada e possuía pouco mais de 6.300 turbinas em funcionamento. Atualmente o país já ocupa o 6o lugar e são quase 10 mil aerogeradores em operação.

“Precisamos de uma classe política e empresarial que respeite a proteção ambiental como uma estratégia de desenvolvimento para as futuras gerações. O Brasil tem no capital natural uma das grandes armas da negociação internacional”, afirma o biólogo pernambucano.

Infelizmente, não parece que é o vem acontecendo. Um estudo publicado em 2021 aponta que 62% da área de parques eólicos construídos nos estados da Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul, era coberta por vegetação nativa e areias costeiras.

O consenso é que os processos de licenciamentos dos empreendimentos sejam mais rigorosos, totalmente transparentes e que haja um monitoramento e fiscalização constantes nos possíveis impactos e nos projetos de compensação ambiental conduzidos pelas empresas após a conclusão das obras.

Fonte: Mongabay.

Foto: ABEEólica/divulgação.