Chancela verde para crimes ambientais

Sediada no Pará, a madeireira Juruá Florestal se apresenta como uma empresa sustentável. Diz a compradores dentro e fora do Brasil que sua madeira, retirada da Amazônia, segue fielmente os parâmetros da lei, desde a extração até o transporte. Para garantir a lisura do processo, a empresa ostenta um certificado de boas práticas ambientais da FSC – a Forest Stewardship Council, ou Conselho de Manejo Florestal, ONG mundialmente conhecida que atesta a exploração responsável de produtos florestais.

A prática, no entanto, é muito diferente do discurso. Por trás da roupagem ecológica, a Juruá Florestal acumula multas do Ibama por diferentes infrações ambientais. A lista inclui destruição de florestas sem autorização do poder público e transporte irregular de madeira. Entre 2010 e 2017, foram doze multas e uma condenação na Justiça. Nesse período, nunca perdeu o selo FSC – que serviu como uma espécie de salvo-conduto para as infrações.

O caso é revelador de um padrão internacional: no mundo todo, grandes empresas de auditoria ambiental, como a FSC, têm ignorado danos ambientais flagrantes causados por seus clientes. Os certificados emitidos por essas organizações acabam, na verdade, conferindo credibilidade a madeireiras que cometem infrações em série, como a Juruá Florestal. É o que mostra a investigação Deforestation Inc., realizada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) em parceria com 39 veículos de mídia. No Brasil, a apuração feita em conjunto pela Revista Piauí, a Agência Pública, o Poder360 mostra que ao menos 60 empresas certificadas pelo FSC e com unidades industriais na Amazônia Legal já foram autuadas pelo Ibama. Juntas, somam mais de R$ 100 milhões em multas por todo tipo de infração: desmatamento ilegal, transporte de madeira sem documentação, fraudes em guias florestais, grilagem de terras, entre outros.

Sustentabilidade” para o mercado ver

O ICIJ descobriu que muitas cadeias de produção do ramo madeireiro, embora tenham recebido o selo de sustentabilidade, passam longe dos padrões exigidos – ao menos em tese – pelas empresas certificadoras. É um caso exemplar do que os ambientalistas chamam de greenwashing (lavagem verde): a prática de empresas de se mostrarem empenhadas com a causa ambiental quando, na verdade, agem no sentido oposto.

No Brasil, foram identificadas sessenta empresas que operam na Amazônia com certificado FSC e acumulam multas do Ibama. Várias delas já foram condenadas na Justiça por crimes ambientais. O fenômeno, no entanto, é mundial. O ICIJ analisou registros de inspeções ambientais e processos judiciais de cinquenta países. A conclusão foi de que, desde 1998, ao menos 340 empresas de produtos florestais certificadas foram acusadas de crimes ambientais e outras infrações. O levantamento considerou denúncias tanto de órgãos governamentais quanto de organizações da sociedade civil. Os dados provavelmente são ainda maiores, mas não é possível ter a dimensão exata do problema – isso porque muitas bases de dados de órgãos públicos não identificam as empresas que cometeram infrações ambientais.

Os auditores – que fazem parte de uma indústria bilionária em franco crescimento – raramente são responsabilizados por minimizar ou ignorar sinais de irregularidades na operação de madeireiras. Isso porque falta regulação nesse mercado. O universo da auditoria ambiental difere muito do universo da auditoria financeira, por exemplo, que é um nicho de mercado altamente regulado e submetido a um número muito maior de regras e diretrizes. Segundo Jonathan White, advogado da ClientEarth, instituição voltada para o direito ambiental, as auditorias ambientais não têm praticamente nenhuma regulação.

Nos últimos vinte anos, grandes e pequenas empresas correram atrás de certificados florestais para mostrar aos seus consumidores e acionistas que estavam comprometidas com diretrizes ecológicas e sociais. Essas certificações, oferecidas por entidades privadas, não são uma exigência legal, mas se tornaram praticamente uma necessidade para empresas que lidam com madeira e outros produtos florestais. O selo de boas práticas ambientais facilita a exportação de produtos (já que muitos compradores exigem o certificado) e a captação de investimentos, além de melhorar a imagem das companhias.

Reputações manchadas

Algumas das principais certificadoras do mundo são a FSC, o PEFC (Programme para the Endorsement of Forest Certification) e o RSPO (Roundtable on Sustainable Palm Oil). As três se tornaram referência em auditoria ambiental. Em 2007, por exemplo, a autora britânica J.K. Rowling, criadora da saga Harry Potter, exigiu que a editora que publicava seus livros usasse papel certificado pela FSC no último volume da série. A editora acatou.

O ramo de auditorias ambientais é parte de uma indústria que movimenta bilhões de dólares por ano com testagem, inspeção e certificação de empresas. Fazem parte desse setor gigantes como a KPMG e a PwC e empresas menores como a PT Inti Multima Sertifikasi, da Indonésia. De modo geral, os auditores fazem avaliações de risco para seus clientes, inspecionam fábricas, entrevistam funcionários das empresas e se certificam de que as operações respeitem padrões ambientais instituídos por organizações como a FSC. Essas ONGs dizem trabalhar para “proteger as florestas do planeta” e “mitigar o desmatamento”.

Com o agravamento da emergência climática, o mercado das certificadoras vem crescendo em ritmo acelerado. Diante da inércia do poder público em muitos países, essas empresas de auditoria se tornaram uma alternativa para tentar garantir uma economia mais limpa.

Especialistas ouvidos pelo ICIJ avaliam que, em países onde há muito desmatamento e as políticas ambientais são incipientes, como o Brasil, a certificação por empresas privadas é uma solução mais eficaz do que a lei, que costuma ser simplesmente ignorada. Nos últimos anos, um número cada vez maior de empresas brasileiras recorreu à chancela de entidades como a FSC – não porque tenham subitamente se dado conta da emergência climática, mas sobretudo porque mercados como os da Europa vêm se tornando mais exigentes e não querem adquirir produtos associados ao desmatamento e outros crimes ambientais.

Durante os nove meses da investigação, 140 repórteres parceiros do ICIJ seguiram os rastros de madeireiras em diferentes cantos do planeta: desde as áreas de conservação da Finlândia até as terras desmatadas da Coreia do Sul e os territórios indígenas da Columbia Britânica, no Canadá. Os jornalistas ouviram membros de comunidades nativas, ativistas que defendem a preservação da floresta, auditores florestais e pessoas que conhecem a indústria por dentro. Examinaram centenas de processos judiciais, dados de infrações e documentos vazados em mais de uma dúzia de idiomas. O projeto cobriu o mundo todo.

Mesmo quando os infratores são punidos, as punições não compensam a destruição de florestas primárias, de habitats naturais e de terras indígenas, de acordo com Danial Dian Prawardani, um dos pesquisadores da Rede de Monitoramento Florestal. “O cálculo do prejuízo ecológico e do impacto ambiental nunca pode ser medido”, afirmou Prawardani.

Em busca de uma solução

Governos de todo o mundo começaram a prestar atenção às afirmações das empresas que dizem ser ecologicamente corretas, porém até agora poucos agiram.

Em 2021, órgãos ligados à defesa do consumidor no Reino Unidos e na Holanda examinaram centenas de sites de empresas e determinaram que 40% das afirmações de ação ambientalmente correta “podem enganar os consumidores”. Uma comissão anticoncorrencial na Austrália deu início a um exame semelhante no final do ano passado.

Já a Comissão Europeia, o braço executivo da União Europeia, cogita aprovar leis que teriam como alvo as chamadas práticas de “greenwashing”, definidas como estratégias de marketing que se baseiam em “afirmações ambientais enganosas”.

Fontes: Agência Pública, Revista Piauí, DW.

Foto: Fernando Augusto/Ibama.