Uma árvore com até 30 metros de altura e 60 centímetros de diâmetro, que vive escondida e espalhada pela Floresta Amazônica.
Ficam distantes alguns quilômetros umas das outras, mas sustentaram por mais de 40 anos, no final do século 19 e início do século 20, a riqueza de cidades como Manaus e Belém.
Trata-se da Hevea brasiliensis, planta nativa da Amazônia, da família das euforbiáceas, mais conhecida como seringueira, da qual se extrai o látex — uma seiva leitosa — com o qual se faz a borracha.
Esse produto foi responsável pela chamada “Belle Époque cabocla”, quando as duas capitais do norte do Brasil tinham características que não deviam nada às das principais cidades europeias na época: ruas largas, arborizadas e calçadas, sistemas de abastecimento d’água, luz elétrica, telefone, teatros, palácios, jornais impressos, exposições e espetáculos de música lírica e outros requintes que só as cidades modernas de então disponibilizavam.
Toda essa riqueza era fruto do que ficou registrado na historiografia nacional como Ciclo da Borracha, período que se estendeu da década de 1860 até 1912, no qual o Brasil era seu maior produtor e exportador, suprindo 90% das necessidades do mercado mundial.
Boom econômico
Foi depois dessas invenções e do consequente aumento da procura por borracha que o Brasil passou a fazer parte dessa história e Manaus e Belém começaram a se transformar em duas das mais importantes cidades da América Latina.
“Antes do início do Ciclo da Borracha, a Amazônia era mera fornecedora de especiarias com a exploração das chamadas drogas do sertão: canela, cravo, anil, cacau, raízes, sementes oleaginosas, salsaparrilha e outros (produtos naturais da floresta) de grande procura no mercado europeu”, diz Silva.
O Brasil atingiu o ápice da sua produção de borracha em 1912. Segundo o historiador Daniel da Silva Klein, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a borracha chegou a figurar como o segundo produto mais importante da agricultura brasileira, respondendo por pouco mais de 23% do total das vendas externas.
“Obviamente que esse posto figurava muito abaixo do café, responsável por 64% do valor das vendas externas do país”, conta. Em toneladas, no entanto, o volume produzido de borracha era 3,5 vezes maior que o de café: 42 mil ante 12 mil.
“Em um curto espaço de tempo de 20 anos (1890-1910), a renda per capita subiu 800% e a população aumentou em 400%.”
Segundo Klein, em número absolutos, a população de Manaus passou de pouco mais de 29 mil pessoas em 1872 para mais de 75 mil em 1920.
“Belém, por sua vez, nesse mesmo período, saltou de quase 62 mil para cerca de 236 mil habitantes”, conta.
Praticamente todo esse aumento populacional se deve à chegada de nordestinos, principalmente do Ceará, para trabalhar nos seringais.
‘Paris dos Trópicos’
Além disso, de acordo com Reinaldo Corrêa Costa, ocorreu um processo de urbanização em cidades como Belém, com a criação de bairros planejados, melhoria na infraestrutura de portos e chegadas de jornais da França e da Inglaterra, que facilitavam a atualização com as informações do mundo.
“Ao mesmo tempo em que as cidades se aproximaram dos centros internacionais, os seringueiros que viviam um processo de exploração e endividamente ficaram isolados, sem ter como denunciar ou recorrer”, acrescenta.
De acordo com ele, a intensa ligação com a Europa trouxera os hábitos de “finesse”, o gosto apurado, a predileção pela moda e pelos autores franceses.
“As casas comerciais ostentavam nomes sugestivos como ‘Bon Marché’, ‘Au Palais Royal’, ‘Bazar Paris’, ‘La Corbeille'”, escreveu.
“No primeiro decênio do século 20, era comum companhias de óperas italianas se apresentarem em Belém e Manaus. Espetáculos no estilo vaudeville eram apresentados por companhias de danças espanholas, italianas e portuguesas, numa reedição do ‘Moulin Rouge’ nos trópicos.”
Ainda de acordo com Tuma Filho, a vida literária e intelectual da região podia ser medida pelo número de jornais que se editavam em Manaus (seis) e Belém (também seis) nesta época, após 1900.
“Grande era o número de escritores, jornalistas e poetas que agitavam a vida boêmia e literária nestas duas capitais”, disse.
“Comum era a frequência com que as pessoas viajavam para a Europa, fossem elas abastados donos de seringais ou jovens intelectuais, filhos da burguesia, que se dirigiam principalmente à França.”
Centenas de paraenses e amazonenses, acrescentou, atravessavam o Atlântico, uns para estudar, outros em busca de saúde nas estações termais, outros pelo prazer de viajar, de enriquecer a alma de sensações e conhecimentos.
No fim do século 19, a capital paraense experimentou um grande crescimento econômico, principalmente por meio de seus “aviadores”, comerciantes que recebiam produtos importados e os vendiam para as mais longínquas regiões produtoras de látex.
Os navios que vinham buscar borracha ou trazer produtos de consumo chegavam à cidade carregados de queijos franceses, vinhos portugueses, vestidos italianos e até empregados europeus, como costureiras belgas, por exemplo.
Como se não bastasse, a elite enriquecida com a borracha esbanjava dinheiro com hábitos exóticos e caros, como mandar engomar roupas em lavanderias de Lisboa e importar patins, para usar durante férias em países frios.
Segundo Pereira, usando os recursos disponíveis e pelos mesmos motivos que Manaus tinha em relação a se autoafirmar como grande metrópole moderna, Belém priorizou a construção de sua casa de ópera, o Theatro da Paz, inaugurado em 1878 e então a maior do Brasil.
O dinheiro abundante advindo do comércio da borracha patrocinava a contratação de famosas companhias líricas brasileiras e estrangeiras para se apresentar no monumental teatro. A casa também recebia visitas ilustres, como a do compositor Carlos Gomes, autor de O Guarani, que, em 1882, apresentou a ópera Salvador Rosa em Belém.
Mais tarde, foi a vez de Manaus alcançar estágio semelhante de desenvolvimento e prosperidade. Entre os resquícios da Belle Époque na Amazônia aludidos por Pereira, está o Teatro Amazonas. Construído no largo de São Sebastião, no centro de Manaus, a casa foi inaugurada em dezembro de 1896, Inspirado na Ópera Garnier de Paris, decorado com porcelana italiana e em alto estilo.
“Manaus foi a primeira cidade brasileira a ser urbanizada e a primeira capital a receber energia elétrica”, diz Pereira.”No auge do Ciclo da Borracha, contava com iluminação pública, água encanada, telefone e telégrafo, além de uma linha de bonde. Nessa época, Manaus tinha várias alcunhas: “Capital da Borracha”, “País das Seringueiras” e “Paris dos Trópicos”.
“Várias são as histórias que se contam da cidade”, revela Pereira.
“Relatos que permeiam o imaginário dão conta de que, ao cair da tarde, era possível ver os comerciantes locais em frente ao suntuoso Teatro Amazonas, fumando charutos feitos com notas de dólares e vestidos à moda parisiense.”
Decadência da borracha
Mas há 110 anos, a partir de 1913, todo esse cenário começou a desmoronar.
Nesse ano, a produção já havia caído para cerca de 36 mil toneladas. Embora desde então o volume produzido de borracha tenha crescido 6,5 vezes até 2021, quando atingiu 235 mil toneladas, último dado disponível, o consumo cresceu mais, chegando a 417 mil toneladas, com o país tendo que importar cerca de 182 mil toneladas.
O que significa que o Brasil passou de maior produtor e exportador de borracha natural no início do século 20 para importador atualmente.
A região dos seringais também mudou. O maior produtor não é mais o Amazonas nem o Pará, mas o estado de São Paulo, que responde hoje por 60% do total do país.
A história desse declínio e do fim da riqueza gerada pela borracha na Amazônia começou bem antes de 1913, no entanto. Mais precisamente em 1876, quando o inglês Henry Wickham (1846-1928), um “aventureiro” para alguns ou um agente a serviço da rainha Vitória para outros, contrabandeou 70 mil sementes de seringueira para o Royal Botanic Gardens de Kew, uma famosa instituição de pesquisas em botânica do Reino Unido.
De acordo com o arqueólogo Vinicius Eduardo Honorato de Oliveira, da UFOP, por causa da grande demanda pelo látex da seringueira, outros países, particularmente a Inglaterra, começaram a tentar ambientar a espécie em outros locais. “O objetivo era produzir borracha em fazendas com as árvores próximas umas das outras”, explica.
Na Inglaterra, apenas 2.600 das sementes levadas por Wickham germinaram, mas foi o suficiente. Elas geraram mudas, que foram transplantadas para as colônias britânicas no Sudoeste Asiático (Tailândia, Malásia, Ceilão, hoje Sri Lanca), onde se adaptaram com sucesso.
As vantagens do seringalistas asiáticos em relação aos brasileiros eram enormes. Como nota Pereira, no Brasil o processo de coleta, processamento e envio da borracha natural para os mercados consumidores era primitivo. “Era algo realizado em locais acessíveis somente por via fluvial, com meses de viagem entre o local de extração do látex e o destino final”, explica.
Quanto mais distante e afastado era o seringal, mais produtivo ele era, mas isso aumentava os custos operacionais. Além disso, outros problemas contribuíram para o declínio dos seringais amazônicos, como o período de extração do látex, que ficava restrito aos seis meses do ano em que os seringais não estavam inundados (período de vazante dos rios da Amazônia).
Pereira cita ainda o rendimento médio da seringueira silvestre, que era de 2,5 a 6 kg de látex em comparação com as árvores plantadas, sistematicamente, em solo asiático, que apresentavam mais de 20 kg de rendimento individual.
“Essa sistematização do plantio fazia com o que o trabalhador asiático pudesse cortar, no mesmo tempo, duas vezes mais árvores do que o seringueiro amazônico”, diz.
“A soma desses e de outros fatores tornou o mercado mundial inacessível para a borracha natural amazônica.”
Para Oliveira, não foi surpresa, portanto, que com o avanço da produção “racional” na Ásia (particularmente na Malásia), o preço da borracha tenha caído demais (já no começo do século 20)..
“Muitos seringalistas quebraram e abandonaram os seringueiros e os seringais”, diz.
“Nesse momento os seringueiros começaram a desenvolver o modo de vida que se vê hoje em muitos lugares.”
Era o fim do Ciclo da Borracha e do apogeu de Manaus e Belém.
Fonte: BBC News.
Foto: Domínio Público.