Como lobby do agro e dos ultraprocessados usa cientistas para defender interesses em Brasília

Em setembro de 2021, a toxicologista Eloísa Dutra Caldas participou remotamente de uma audiência da Comissão de Meio Ambiente do Senado para debater “mitos e verdades sobre uso de agrotóxicos”. Ela foi apresentada como professora titular da Unb (Universidade de Brasília) e perita associada da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).

O que não foi dito na ocasião é que a especialista era também consultora de uma instituição financiada por gigantes do agronegócio, incluindo fabricantes de agrotóxicos com interesses financeiros diretos naquela audiência. Trata-se do Ilsi, o International Life Sciences Institute (ou Instituto Internacional de Ciências da Vida).

Fundado em 1978 pelo então vice-presidente da Coca-Cola, o Ilsi se apresenta como uma organização sem fins lucrativos de incentivo à pesquisa, com a proposta de unir ciência, indústria e governos em benefício público. Porém, seus críticos dizem que a entidade atua, na prática, em prol de interesses privados e por políticas públicas mais favoráveis a seus financiadores – no caso, as indústrias de bebidas, alimentos e agrotóxicos.

As polêmicas do instituto já foram tema dos jornais The New York Times e The Guardian, que mostraram a influência do Ilsi na definição de rótulos de alimentos industrializados na Índia, e sua participação em um painel da ONU sobre agrotóxicos.

No Brasil, além de publicar pesquisas próprias, financiar a participação de cientistas em eventos e realizar congressos, a instituição conta também com dezenas de consultores em fóruns públicos. Mas, nem sempre esses pesquisadores declaram seus vínculos com o Ilsi. Foi o que se viu na audiência de 2021 sobre agrotóxicos.

Uma vez com a palavra, a pesquisadora Eloísa Caldas fez uma pergunta aos senadores: “É fato que pesticidas podem estar presentes nos alimentos, na água e no leite. Mas isso representa um risco para a saúde?”. Em seguida, declarou: “Minha resposta é que o risco é irrelevante, considerando o benefício do consumo de um bom prato de salada e o benefício da amamentação”.

Caldas integrava na época a paraça tarefa de Agroquímicos do instituto, responsável por pesquisas e eventos. Esse grupo é mantido pelas principais fabricantes de agrotóxicos, segundo o Ilsi, como Bayer, FMC Agrícola, Iharabras e UPL.

Apesar do currículo da especialista, a omissão de sua relação com o Ilsi é criticada por outros pesquisadores por se tratar de um potencial caso de conflito de interesses, o que levanta questionamentos sobre a sua fala.

“A ciência apoiada pela indústria é utilizada para defender sua narrativa, modificar medidas regulatórias, atrapalhar processos, atrasar ou derrubar discussões sobre políticas públicas”, critica a pesquisadora Laís Amaral, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

“Isso é bastante preocupante, porque essa ciência é colocada como evidência científica. Mas a população não sabe o que é uma pesquisa sem conflito de interesses e o que não é”, completa.

Procurada, Caldas declarou à Repórter Brasil que sempre se apresenta como professora e pesquisadora da UnB, pois é sua “única vinculação”. “Não vejo nenhum conflito de interesse na minha colaboração com a Ilsi, não tenho nenhum ganho pessoal nesta participação, e nenhum vínculo com empresas”, continua.

Nova lei enfraqueceu proteção à saúde e ao meio ambiente

Caldas já havia participado de outras duas audiências sobre agrotóxicos, em 2016, nas quais também minimizou os riscos dos pesticidas. Ela sempre foi apresentada como professora da Unb e nunca foram mencionados seus laços com o Ilsi.

Os eventos faziam parte das discussões envolvendo a nova Lei dos Agrotóxicos, cuja tramitação durou mais de 20 anos no Congresso, até a aprovação do texto em dezembro passado.

Embora o Ilsi anuncie como missão a defesa da vida, da saúde e do meio ambiente, seus cientistas atuaram em prol de uma lei que enfraqueceu a Anvisa e o Ibama, os dois órgãos públicos especializados na proteção da saúde e do meio ambiente. Tanto que o texto foi apelidado por ambientalistas de “PL do Veneno”, por afrouxar as regras de uso dos pesticidas.

Para a toxicologista e pesquisadora da Fiocruz Karen Friedrich, é “lucrativo” para as empresas ligadas ao instituto “ter um grupo de ‘cientistas’ de plantão que defendem a segurança desses produtos”. “O Ilsi comporta uma ‘ciência’ enviesada para definir limites de tolerância cada vez maiores [de resíduos de agrotóxicos nos alimentos]”, afirma.

Cientistas do Ilsi e a bancada ruralista

A Repórter Brasil identificou outros consultores científicos do Ilsi que participaram de audiências públicas no Congresso sobre agrotóxicos. Em todos os casos, os cientistas eram convocados por deputados e senadores da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o braço institucional da bancada ruralista.

Durante audiência em 2022 no Senado, o agrônomo da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Caio Carbonari apresentou-se como professor da universidade e defendeu “pontos relevantes” da nova Lei de Agrotóxicos.

Na sua apresentação, disponível no site do Senado, Carbonari tocou em um dos pontos mais sensíveis da discussão, a respeito da reavaliação de agrotóxicos. “Se para cientificamente comprovado que algum produto pode causar dano para a saúde humana ou ao meio ambiente nas condições recomendadas de uso, o órgão regulador é responsável por manifestar-se através da reavaliação, podendo restringir ou mesmo banir o uso do produto no Brasil”, apresentou.

Porém, órgãos reguladores como Anvisa e Ibama perderam o poder de “restringir” ou “banir” o uso das substâncias, já que a nova lei transformou esses órgãos em instâncias meramente consultivas, dando o poder final de decisão exclusivamente ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

Outro consultor do Ilsi, Ângelo Zanaga Trapé, médico toxicologista e professor aposentado da Unicamp, também foi convocado por membros da bancada ruralista para participar de debates em Brasília.

Em julho de 2020, a Repórter Brasil revelou que uma pesquisa inacabada coordenada por Trapé – e financiada pela Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja) –, estava sendo usada pelo lobby do agro para reverter a proibição de uso do paraquate. Esse agrotóxico é capaz de gerar mutações genéticas e a doença de Parkinson. A pesquisa foi suspensa após a publicação da reportagem. Trapé também não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Ultraprocessados e a nova Cesta Básica

A participação do Ilsi em debates públicos também se verifica em outros mercados, como o de produtos ultraprocessados. Reportagem d’O Joio e O Trigo mostrou que um comitê da Anvisa para alimentos funcionais composto por sete integrantes tinha quatro pesquisadores associados ao instituto.

O Ilsi costuma também patrocinar eventos e publicações a respeito dos alimentos industrializados, com patrocínio de empresas do setor, como Mars, General Mills, Nestlé, Kellogg e Unilever.

Os esforços da indústria alimentícia para desconstruir as políticas regulatórias foram denunciados em dossiê publicado em 2021 pelo Idec e pela ACT Promoção da Saúde, organizações que monitoram o lobby no setor.

Uma das estratégias adotadas pelas corporações é questionar a “NOVA”, uma classificação que categoriza os alimentos a partir do seu grau de processamento, diferenciando “in natura, processado e ultraprocessado”. A NOVA foi desenvolvida por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e passou a ser adotada como referência de política pública, mas vem recebendo críticas do setor industrial.

Um artigo científico citado no dossiê identificou 38 autores críticos à NOVA. Desse total, 32 eram ligados à indústria de ultraprocessados e 20 deles tinham relações com o Ilsi.

O Ilsi Brasil chegou a publicar uma vídeo-aula intitulada “Alimentos ultraprocessados: preocupação real ou medo infundado?”, na qual uma representante da Unilever questiona a classificação NOVA.

Na sessão, a palestrante, que é também integrante da diretoria do Ilsi, afirma que “a classificação de alimentos ultraprocessados não diz nada”. Ela chega a defender que uma lasanha ultraprocessada pode ter melhor valor nutricional do que uma caseira, “com base no teor de gorduras e proteínas, mas ignorando o excesso de sódio e presença dos aditivos químicos na versão industrializada”,  ressalva o dossiê.

Apesar dos ataques da indústria, a NOVA é adotada em políticas públicas de ao menos seis outros países – como Canadá, Israel e Uruguai – e norteia estudos da Agência Internacional do Câncer (IARC) e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), ambas ligadas à OMS.

Em 2014, a NOVA embasou o Guia Alimentar para a População Brasileira, e neste ano, serviu de alicerce para a nova cesta básica de alimentos.

Sul global na mira

Entre as empresas associadas à Ilsi Brasil estão a Unilever, a Mondelez, a Piracanjuba e a Cargill, principal exportadora de soja. Funcionários dessas empresas também integram a diretoria do escritório brasileiro.

No mundo, o número de escritórios vem diminuindo ao longo dos anos: de 17, em 2019, para dez hoje. O instituto vem concentrando sua atuação em países do sul global, explica Ashka Naik, diretora da Corporate Accountability – organização que denunciou a suposta atuação do Ilsi no processo de atualização das diretrizes alimentares dos Estados Unidos.

“É mais fácil manipular a ciência e a elaboração de políticas em regiões onde as instituições científicas e regulatórias não são tão bem fomentadas”, diz Naik.

Fonte: Reporte Brasil, IDEC.

Imagem: Divulgação.