Na década de 1970, ecologistas marchavam em Paris erguendo cartazes e cata-ventos cor-de-rosa pelo fim da energia nuclear. Não imaginavam que o cata-vento em seus quintais poderia perturbar com o ruído, atrapalhar a paisagem e interferir na vida selvagem. Emílio La Rovere, professor do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ, um dos maiores centros de ensino e pesquisa de engenharia da América Latina, e conselheiro científico de Um Só Planeta, testemunhou os protestos na capital francesa, onde estudou.
Desde então, acompanha a evolução do setor no Brasil e no mundo. Nunca esqueceu como, em 1988, a inauguração de uma usina experimental de energia eólica em Fernando de Noronha virou um espetáculo macabro. Gaivotas abatidas pelas hélices caíam ao lado do cata-vento em terra. De lá para cá, muita coisa mudou. “Os custos ficaram menores e as pás maiores, e precisam de menos velocidade para gerar mais energia. No mar, o problema paisagístico pode ficar ainda menor. Há empresas pedindo autorização para pintar as hélices da cor dos navios da Marinha porque isso ajuda a camuflar os aerogeradores na paisagem”, ressalta La Rovere.
Com níveis variáveis de compromisso, países, empresas e sociedade civil buscam soluções para reduzir ou anular o uso de combustíveis fósseis, a fonte de gases que alteram o clima e ameaçam a vida no planeta. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, reclama que nem todos os líderes fazem o suficiente, tanto que seguem investindo na expansão da indústria de óleo e gás. Para compensar a alta no preço da energia decorrente da invasão da Ucrânia, os subsídios para o petróleo atingiram nível recorde em 2022: US$ 7 trilhões, segundo o Fundo Monetário Internacional. O recado de Guterres vai também para petrolíferas que querem ampliar suas reservas de petróleo e estão atrasadas na transição energética. É o caso da Petrobras, que até este ano sequer tinha uma diretoria dedicada a energia renovável.
Preocupada com a questão, a União Europeia é uma das mais empenhadas na transição, e foi uma das poucas que teve representantes no Climate Ambition Summit, organizado pela ONU em Nova York e para o qual nem Estados Unidos nem China foram convidados. Os chineses figuram entre os maiores poluidores do planeta e também produzem um terço de toda a eletricidade de fonte eólica offshore do mundo. São os mais agressivos na expansão da energia renovável: em 2022, a China acrescentou à sua matriz energética mais de três vezes o que a Europa conseguiu com todas as suas iniciativas para alcançar uma economia zero de carbono até 2050. O bloco europeu pretende elevar a potência instalada em parques eólicos no Mar do Norte dos atuais 5 GW para 300 GW, adotando leis que facilitam sua instalação.
O vento é um elemento muito menos estudado do que a temperatura do planeta, registrada há milênios, e, por natureza, parece o retrato das incertezas. Um artigo publicado pela revista digital da Yale School of the Environment questiona se a mudança climática poderá desacelerar os ventos do planeta. Com polos menos frios, as massas de ar se deslocariam com menos paraça – é a diferença de pressão, devida principalmente a diferenças de temperatura, que faz surgir o vento. Ano passado, parte da Europa viveu uma “seca de vento” inédita. No Reino Unido, chegou a reduzir a produção de energia no Mar do Norte. O relatório do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental para Mudança Climática) aponta que até 2100 pode haver redução de 10% na velocidade média dos ventos no planeta, o que diminuiria em 30% a produção de energia.
A intermitência das fontes renováveis sempre foi um desafio. “Lidamos com ciclos mais curtos e mais longos, ventos mais fortes e mais fracos, faz parte”, diz o executivo da CTG, para quem o maior competidor da energia eólica em terra não é sua correlata no mar, mas as usinas solares, cada vez mais baratas. A desvantagem da solar é não trabalhar de noite. Por causa dessa oscilação é comum encontrar projetos que combinam várias fontes. Os europeus testam usinas para aproveitar a energia das ondas, das marés, do sol em painéis fotovoltaicos flutuantes e até para transformar algas em biocombustíveis.
Dona de um projeto pioneiro de painéis fotovoltaicos flutuantes no Mar do Norte, a holandesa Oceans of Energy é a única a fazer isso em águas tão turbulentas. Visto do alto, o parque solar, de área equivalente a uma vez e meia um campo de futebol, lembra um delicado tapete de vidro. Mas só a aparência é frágil: em fevereiro do ano passado, enfrentou ventos de até 140 km/h e ondas de dez metros por seis dias consecutivos. Foi a tempestade mais forte em 52 anos. “Precisávamos aprender e estar abertos para surpresas, porque o mar tem muitas”, diz um dos informes da empresa.
Potencial offshore
Sem parques eólicos no mar, mas com ventos frequentes e fortes, o Brasil sempre impressionou investidores estrangeiros. “Lembro que os europeus vinham aqui em 2009, quando começou a energia eólica em terra, e não acreditavam nas nossas medições, que superavam as melhores referências mundiais”, diz Lucas Cardoso Sanchez, diretor de Energias Renováveis da CTG – subsidiária da chinesa Three Gorges Corporation. A CTG está construindo no Brasil o maior parque eólico fora da China, em terra. Tem quase 650 MW de potência instalada e fica pronto em dezembro de 2025, na Paraíba. Depois da Eletrobras, que ainda não tem planos para explorar o potencial da energia verde offshore, a CTG é a maior geradora de energia renovável no Brasil.
Ainda que os ventos no mar sejam melhores e que o traçado dos parques menos complexo, o custo em terra é menos da metade do offshore, segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética. “Temos 25 GW instalados e poderíamos dobrar com bons projetos. Na Europa, não sobrou muito território atraente para parques terrestres”, diz Sanchez. Então, por que tanta gente querendo ir para o mar no Brasil? A costa é enorme e o vento é melhor do que em terra. Além disso, na busca por eficiência, os aerogeradores estão cada vez maiores, e transportá-los por estrada está se tornando inviável.
“O mapa eólico da nossa costa revela áreas boas e outras nem tanto. E essas não tão boas são comparáveis às exploradas na Europa”, diz Arnaldo dos Santos Júnior, consultor técnico da Empresa de Pesquisa Energética. A EPE estima a geração de eletricidade com vento em áreas próximas ao litoral em 700 GW. Para se ter uma ideia, o potencial hídrico brasileiro é de 172 GW, dos quais mais de 60% já foram usados. Boa parte do que sobrou está na bacia do Amazonas, o que complica seguir investindo em hidrelétricas. São elas que hoje garantem a produção de 90% da eletricidade brasileira. Apesar de também impactarem o meio ambiente, são uma matriz energética limpíssima se comparadas a uma termelétrica a carvão, comum em países europeus. No mundo, o percentual de eletricidade limpa é de 12%.
No caso da energia eólica no mar, teremos de começar pela experiência internacional. Depois da China, Reino Unido e Alemanha são os principais mercados da área. Berço da tecnologia, a Europa se voltou para o território líquido por falta de espaço em terra. Data do início dos anos 1990 seu primeiro parque eólico marítimo, ao sul da Dinamarca. Rafael Vasconcelos, pesquisador sênior em Eólica Offshore da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, foi ver de perto os parques no Mar do Norte e pesquisou da construção aos impactos. Também testemunhou a resistência dos pescadores franceses: em maio de 2021, eles cercaram com 70 pequenos barcos uma embarcação gigante com turbinas e impediram a construção de um parque que atrapalharia o negócio deles. O pesquisador até escalou um aerogerador na Dinamarca, usando escadas de emergência pouco recomendadas para quem tem fobia de altura.
O trabalho de Vasconcelos, intitulado Mapeamento de modelos decisórios ambientais aplicados na Europa para empreendimentos eólicos offshore, ajudou o Ibama a criar o primeiro termo de referência para licenciamento de usinas eólicas no mar. Um dos coordenadores da diretoria de Licenciamento Ambiental do órgão, Eduardo Wagner informa que ainda falta um estudo espacial do mar no Brasil, a cargo de Marinha, do Ministério do Meio Ambiente e outros ministérios. “Na Europa, todos os países fazem esse planejamento, importante para evitar problemas com pesca e impacto visual. Na Escócia, por exemplo, a distância mínima permitida do litoral leva em conta a curvatura da Terra. São 32 quilômetros para ninguém enxergar o aerogerador da costa”, explica Wagner. “Um cata-vento a três quilômetros de Jericoacoara é inviável.”
Fontes: Um Só Planeta, Época Negócios.
Imagem: Mits Loan Review.