Eunice Foote: a feminista do século 19 que descobriu as primeiras evidências do efeito estufa e foi esquecida

Em 1856, participantes de um congresso científico nos Estados Unidos ouviram a apresentação de evidências inéditas de que o gás carbônico tinha uma capacidade notável de esquentar diante da exposição ao sol e que isso poderia ter um papel no clima do planeta.

Mas quem apresentou essas evidências não foi quem as constatou em um experimento, a cientista amadora americana Eunice Foote (1819–1888) — e sim um outro cientista, Joseph Henry, o primeiro diretor da história do prestigiado instituto Smithsonian.

Pesquisadores contemporâneos consideram que Henry fez isso para destacar os achados de Foote, que foi por ele citada como autora, sem que isso fosse muito chocante para a sociedade — afinal, naquele tempo, a educação e a produção científica separavam homens e mulheres, sendo eles muito mais privilegiados do que elas nesses campos, tanto em termos de acesso a recursos quanto de reconhecimento.

Segundo um relato de 1857 escrito pelo jornalista David Ames Wells sobre o congresso no ano anterior, Henry introduziu a pesquisa de Eunice Foote afirmando que “a ciência não tem país ou sexo” e que “a atuação da mulher inclui não apenas o belo e o útil, mas o verdadeiro”.

Ainda que a pesquisa de Foote tenha tido alguma repercussão na imprensa americana da época e tenha sido publicada pontualmente em alguns periódicos científicos, sua contribuição se esvaneceu com o passar do tempo.

Três anos depois da apresentação dos achados da americana, o irlandês John Tyndall (1822-1893) começou a publicar uma série de achados sobre o efeito estufa — embora o termo ainda não fosse usado — e se consagrou como o cientista que comprovou o fenômeno.

Se Tyndall sabia ou não do trabalho de Foote ainda é tema de intensos debates até hoje.

O trabalho de Foote foi resgatado recentemente, quando o geólogo aposentado Raymond Sorenson encontrou, em sua coleção de livros científicos, o registro feito por David Ames Wells em 1857.

Desde então, a história da cientista amadora americana — que também foi signatária de um importante documento pelo direito das mulheres nos EUA — virou um curta-metragem, Eunice (2018). E a história deve ser publicada em uma biografia, cujo autor conversou com a BBC.

Em 2020, o New York Times publicou um obituário de Eunice Foote como parte de seu projeto Overlooked, que traz artigos sobre personalidades cujas mortes não haviam sido registradas pelo jornal.

Antes de se casar em 1841 com o juiz e também cientista amador Elisha Foote, seu nome era Eunice Newton. Ela nasceu em 1819 na cidade de Goshen, Connecticut, no nordeste dos EUA — a primeira parte do país a ser ocupada por colonos britânicos.

Foote estudou no Seminário Feminino de Troy, uma instituição pioneira de ensino para meninas.

“Era a única escola feminina do mundo, na época, que não só tinha ciências no currículo, mas também tinha um dos dois únicos laboratórios para alunas do ensino médio. Então, ela era mais proficiente em ciência do que provavelmente a maioria dos homens”, explica Perlin, que é físico e tem um livro publicado no Brasil (História das florestas: a importância da madeira no desenvolvimento da civilização).

O biógrafo conta que, depois de se casarem, Eunice e Elisha se estabeleceram em Seneca Falls, no Estado de Nova York, onde Elisha era um dos “líderes” da comunidade. O casal teve duas filhas, Mary e Augusta.

Ambos eram entusiastas da ciência, e Elisha, assim como Eunice, publicou alguns de seus achados. Inclusive, textos de ambos aparecem na edição de novembro de 1856 do periódico American Journal of Science and Arts. É nele que aparece um texto de Eunice sobre os efeitos do sol sobre o dióxido de carbono, Circumstances affecting the Heat of the Sun’s Rays (“Circunstâncias afetando o calor dos raios solares”, em tradução livre).

A americana conectou essa constatação com o clima da Terra: “Uma atmosfera com esse gás poderia dar à nossa Terra uma alta temperatura; e, como alguns supõem, se em algum período da história o ar fosse misturado com ele [dióxido de carbono] em uma quantidade maior do que no presente, um aumento de temperatura […] deve ter sido o resultado”.

O efeito estufa diz respeito ao papel dos gases da atmosfera em reter a energia solar irradiada pela superfície da Terra. Alguns desses gases, como o dióxido de carbono, o metano e o óxido nitroso, aumentaram muito em concentração na atmosfera desde a revolução industrial, já que eles são liberados com a queima de combustíveis fósseis e outras atividades humanas como a pecuária.

Assim, chegamos à situação em que o planeta se tornou cerca de 1,2°C mais quente do que no século 19 — e a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera aumentou em 50%. Este é o gás do efeito estufa mais emitido por nós.

“Por muito tempo, ninguém conseguiu encontrar trabalhos dela fora dos Estados Unidos. Mas, na minha pesquisa, descobri que ela foi publicada tanto no Reino Unido quanto na Alemanha — e os alemães eram os líderes na pesquisa científica naquela época”, aponta Perlin, referindo-se a textos de Foote publicados no periódico alemão Die Fortshritte der Physik im Jahre e no Annual of Scientific Discovery, publicado nos EUA e no Reino Unido.

O biógrafo destaca que as descobertas de Foote sobre o dióxido de carbono tiveram boa cobertura também na imprensa americana, sendo registradas em 1856 pelo jornal New York Daily Tribune e pela revista Scientific American.

Um sinal de que o casal Foote estava antenado a esse contexto é a assinatura de ambos, Eunice e Elisha, na “Declaração de Sentimentos” da Convenção dos Diretos das Mulheres de Seneca Falls de 1848. Foi a primeira convenção onde se tratou, entre outros assuntos, do sufrágio feminino.

O fato é que Eunice Foote escreveu seu nome na história. A pesquisadora Mary Creese fez um levantamento da produção científica no Reino Unido e nos EUA entre 1800 e 1900 e identificou que menos de 1% do total publicado foi assinado por mulheres.

Nos EUA, apenas 16 artigos científicos na área de física daquele século foram escritos por mulheres. Desses, somente dois são anteriores 1889: ambos escritos por Eunice Foote.

“Se hoje a física é um curso masculino, imagina naquela época?”, diz a física Erondina Azevedo. “Por exemplo, na minha turma da universidade, entramos apenas três mulheres, e eu me formei sozinha.”

“A Eunice, com toda a beleza experimental que trouxe e com a participação na luta feminista, mostrou que era uma mulher à frente de seu tempo. Infelizmente, apagada com a maior parte das mulheres que ousaram em algum momento lutar por seu lugar na ciência.”

Fonte: G1, BBC.

Foto: Carlyn Iverson\NOAA\www.climate.gov.