A Amazônia pode perder quase 18 milhões de hectares de floresta, uma área equivalente à do Uruguai (17,6 milhões de hectares), se o Congresso aprovar o projeto de lei 3334/2023, que ampliará a área que donos de fazendas na Amazônia podem desmatar em suas propriedades.
Apresentado pelo senador Jaime Bagattoli (PL-RO), o projeto propõe reduzir a reserva legal, como é chamada a área que precisa ser mantida intacta pelos produtores rurais. Nas regiões de floresta da Amazônia, a reserva legal pode representar até 80% do total da propriedade, fração que Bagattoli quer reduzir para 50%. Se toda a área liberada para corte de fato vier abaixo, isso lançaria na atmosfera uma quantidade de carbono cinco vezes maior do que as emissões líquidas do Brasil em 2022, o que inviabilizaria o compromisso que o país assumiu no Acordo de Paris, que busca minimizar os impactos do aquecimento global.
A meta do Brasil é chegar em 2030 emitindo o equivalente a 1,2 bilhão de toneladas de CO2 por ano; só a derrubada dos 18 milhões de hectares que ficariam desprotegidos com a aprovação do PL do desmatamento lançaria na atmosfera o equivalente a 8,7 bilhões de toneladas de CO2. Se o carbono de toda essa massa verde para parar na atmosfera, vai contribuir para elevar ainda mais a temperatura da terra e do oceano e estimular a ocorrência de eventos extremos como as enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul.
Além disso, o projeto de lei proposto por Jaime Bagattoli desobrigaria proprietários rurais da Amazônia de restaurar 6,2 milhões de hectares – uma área maior que a da Paraíba. Somada com a área que seria liberada para desmatamento, a aprovação do projeto colocaria em risco uma área de mais de 24 milhões de hectares – maior que a de Rondônia – que teriam que estar cobertos por vegetação nativa de acordo com a legislação atual.
O cálculo foi feito a pedido da Piauí pelo engenheiro florestal Tasso Azevedo, usando a base de dados compilada pelo Mapbiomas, uma iniciativa que reúne centros de pesquisa, organizações ambientalistas e startups para monitorar a cobertura e o uso da terra em todo o Brasil. Azevedo, que é coordenador-geral do Mapbiomas, lembrou que o Brasil se comprometeu a zerar o desmatamento até 2030. “Uma medida como essa criaria uma contradição com as políticas e com as metas de clima do Brasil”, afirmou.
Para além de todo o carbono despejado na atmosfera, a abertura de milhões de hectares da Amazônia para o desmatamento poderia precipitar a chegada do ponto de não retorno desse bioma. Esse é o patamar a partir do qual a floresta atingirá um patamar de degradação além do qual ela será incapaz de gerar as chuvas que garantem a sua própria sobrevivência, mas também aquelas que são levadas pelos chamados rios voadores (massas de ar carregadas de vapor d’água) ao resto do continente, contribuindo para irrigar a maior parte da agricultura brasileira.
A existência do ponto de não retorno foi postulada por estudos de modelagem climática feitos a partir dos anos 1990. Os modelos mostravam que esse ponto poderia ser atingido quando o desmatamento chegasse a 20% ou 25% da Amazônia – o total derrubado já está quase lá, se aproximando da marca de um quinto do bioma original derrubado. Tasso Azevedo notou que a área de 24 milhões de hectares que o PL 3334 tomaria da floresta corresponde a mais de 7% do bioma. “Isso significaria ultrapassar o ponto de ruptura e colocar em risco a própria integridade da Amazônia”, afirmou.
Pesquisas feitas em campo, contudo, constataram que a floresta já está mostrando sinais de perda de resiliência. Um estudo publicado em fevereiro deste ano pelo grupo da matemática e meteorologista Marina Hirota, da Universidade Federal de Santa Catarina, mostrou que uma área que equivale de 10% a 47% da floresta amazônica está sob a ameaça de atingir um ponto de transição irreversível até 2050.
A maioria esmagadora da população brasileira enxerga algum tipo de associação entre a crise climática e as enchentes no Rio Grande do Sul. Essa relação é direta para 64% das 2 mil pessoas ouvidas pelo instituto Quaest no começo de maio, e parcial para 30% dos entrevistados. “Os brasileiros sabem fazer a conexão, a questão é se os seus representantes políticos estão preocupados com as mudanças climáticas”, disse a advogada Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, uma coalizão de ONGs ambientalistas. “A mensagem que eles passam desde sempre é que não conseguem ou não querem entender a conexão entre desmatamento, aumento de emissões e eventos extremos, ou pelo menos não fazem isso publicamente, porque a essa altura do campeonato já devem saber.” Para Araújo, os ruralistas que defendem o avanço do agronegócio sobre a floresta estão dando um tiro no pé. “Eles priorizam uma visão imediatista de ganho a curtíssimo prazo que vai afetar profundamente o setor.”
O agronegócio está sentindo diretamente o prejuízo das quebras de safra por extremos climáticos. No caso das enchentes no Rio Grande do Sul, as perdas projetadas para o setor passam de 3,3 bilhões de reais. Se a temperatura subir 3°C até 2050, a produção agrícola brasileira pode cair até 50%, conforme estimativa citada num estudo produzido pela Embrapa, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, para projetar o futuro da agricultura brasileira.
A obrigatoriedade de preservar parte da vegetação nativa das propriedades rurais nasceu da constatação de que essas áreas são fundamentais para conservar a biodiversidade e os ecossistemas naturais, além de regularem o clima, protegerem os cursos d’água e contribuírem para a formação das chuvas. Essa ideia está inscrita na legislação brasileira desde 1934, quando o país teve seu primeiro código florestal. A proteção naquele momento era de 25% dos imóveis rurais, mas essa proporção foi aumentando ao longo do tempo na Amazônia.
A proteção de 80% que incomoda os ruralistas foi introduzida em 1996 por uma medida provisória do então presidente Fernando Henrique Cardoso, após seu governo registrar a pior taxa de desmatamento da história – só em 1995, a Amazônia perdeu uma área maior que a do estado de Alagoas. A reserva legal de 80% no bioma foi consolidada com a aprovação do Código Florestal em 2012, após anos de discussões que opuseram ruralistas e ambientalistas.
O PL em discussão no Senado não é o primeiro e nem o único a tentar flexibilizar a reserva legal. Em 2019, Marcio Bittar (que estava então no MDB) apresentou, junto com o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), um projeto de lei que ia ainda mais longe e propunha simplesmente extinguir a reserva legal – e, com ela, a obrigação de proteger qualquer fração da vegetação nativa dos imóveis rurais. A argumentação usada no projeto se amparava nos argumentos de Evaristo de Miranda, o agrônomo negacionista da crise climática que inspirou as políticas ambientais do governo de Jair Bolsonaro. A proposta foi retirada pelos próprios autores, mas a discussão pública motivada por ela ajudou a naturalizar a ideia de que a reserva legal representa um obstáculo injusto para os produtores rurais – um argumento que ignora os imensos prejuízos que o agronegócio brasileiro terá devido a eventos extremos como as enchentes gaúchas.
Os ruralistas enxergam os 80% de reserva legal como um ônus injusto aos proprietários de terra na Amazônia. Mas a verdade é que esse percentual se aplica a menos de um quarto dos imóveis rurais da Amazônia, conforme mostrou um levantamento conduzido pelo engenheiro ambiental Heron Martins a pedido da Piauí. Martins explica que a proteção de 80% corresponde a apenas um de seis casos previstos no Código Florestal para os imóveis rurais da Amazônia. Na prática, apenas 22,75% das propriedades são obrigadas a obedecer a esse percentual mais restritivo de reserva legal. “A exceção virou regra na Amazônia quando se fala em reserva legal”, disse Martins, que atua como analista do Center para Climate Crime Analysis.
O engenheiro ambiental lembra que, mesmo com todas as exceções previstas no Código Florestal, a reserva legal não tem sido observada pelos produtores rurais. De acordo com um levantamento do Observatório do Código Florestal, uma rede de organizações que monitoram a implementação dessa lei, o déficit de reserva legal na Amazônia – ou seja, as áreas que deveriam estar preservadas conforme a lei, mas foram derrubadas – chega a 9,7 milhões de hectares.
O senador Jaime Bagattoli propôs o PL 3334 com o intuito de “incentivar o desenvolvimento dos municípios amazônicos”. No entanto, uma série de estudos feitos na Amazônia ao longo dos últimos vinte anos mostram que a prosperidade gerada pelo desmatamento num primeiro momento é temporária e costuma ser seguida por uma piora no IDH, na renda per capita, na taxa de alfabetização e na expectativa de vida das áreas afetadas, dentre outros indicadores. “Nos últimos vinte anos a gente tem produzido trabalhos que mostram que o desmatamento não é necessário para aumentar a produção agropecuária da Amazônia”, disse à Piauí o agrônomo Adalberto Veríssimo, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). “Eles mostram ainda que o que move o desmatamento não é a necessidade de expandir a produção, mas a necessidade de especulação e a grilagem de terras.”
Já foram desmatados pelo menos 84 milhões de hectares da Amazônia, uma área maior que os territórios de Minas Gerais e São Paulo juntos. De acordo com o relatório O Paradoxo Amazônico, lançado em 2022 por Veríssimo e outros dois colegas, seria possível ampliar a produção agropecuária brasileira ocupando uma área menor do que a que já foi desmatada, desde que se melhorasse a produtividade da pecuária, que é muito baixa na Amazônia. Ainda assim, sobraria uma área de cerca de 37 milhões de hectares – uma área maior que a de Mato Grosso do Sul – que poderia ser destinada para o reflorestamento ou para cultivos agroflorestais. “Não há justificativa econômica para expandir novos desmatamentos na região”, disse o agrônomo.
O estudo O Paradoxo Amazônico mostra ainda que a maior parte dos empregos gerados na Amazônia está nas cidades, em atividades sem relação com o agronegócio ou com a economia da floresta. “Não há justificativa para se achar que o desmatamento vai gerar mais emprego”, disse Veríssimo. “O desmatamento não se justifica do ponto de vista social e econômico, e muito menos do ponto de vista ambiental e geopolítico.”
A mesma falsa premissa de que o desmatamento levará ao desenvolvimento parece estar por trás de outros projetos de lei que propõem enfraquecer a proteção legal ao meio ambiente e que se encontram em diferentes fases de tramitação nas duas casas do Congresso. Um levantamento feito pelo Observatório do Clima elencou 25 projetos de lei e três propostas de emenda constitucional que integram o que eles chamaram de “pacote da destruição”.
A começar pelo PL 364/2019, que foi aprovado em março pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O projeto propõe eliminar a proteção a toda a vegetação não florestal, incluindo 48 milhões de hectares de campos nativos no Pantanal, no Pampa e no Cerrado – uma área maior que a de Rondônia e Roraima juntos.
Outro projeto que gela a espinha dos ambientalistas é o PL 2159/2021, que está atualmente no Senado. O projeto revê as normas para licenciamento ambiental e amplia a possibilidade de os empreendedores fazerem o licenciamento automático, sem análise prévia por autoridades ambientais. “Você aperta um botão e a licença ambiental sai impressa, sem estudo de impacto ambiental, quanto menos de impacto climático”, alertou Suely Araújo.
Para a ambientalista, a existência de dezenas de projetos que podem trazer retrocesso ambiental mostra que os parlamentares, em sua maioria, enxergam as normas de proteção ambiental como entrave e que, na prática, acabam agindo como negacionistas do clima. “É inadmissível essa postura do Congresso Nacional em plena crise climática”, afirmou Araújo.
Outro projeto que consta na lista dos ambientalistas é o PL 2168/2021, que afrouxa a proteção sobre as áreas de preservação permanente (APPs) que haviam sido estipuladas pelo Código Florestal. O projeto permite o desmatamento das APPs para a instalação de infraestrutura de irrigação e pode aumentar a escassez hídrica em várias regiões
O advogado Marcelo Elvira, do Observatório do Código Florestal notou que a posição do Congresso vai na contramão do protagonismo que o Brasil pretende assumir na discussão climática internacional. O clima é uma pauta central da presidência do Brasil no G20, que se reúne este ano no Rio de Janeiro, e Belém vai receber no ano que vem a COP30, na primeira vez em que uma Conferência do Clima da ONU será sediada na Amazônia. “Ao propor afrouxar a legislação ambiental, o Parlamento está completamente dissociado dessa agenda ambiental e climática”, disse o advogado.
Fonte: Piauí.
Foto: © Bruno Kelly / Greenpeace.