O Nordeste na liderança da transição energética

Por sua posição estratégica, com bons ventos, abundância de sol e uma extensa região costeira, o Nordeste tem se tornado um grande protagonista na transição energética das fontes fósseis para as renováveis e na busca pela neutralidade de emissões dos gases de efeito estufa (GEE) até 2050, conforme estipulado na meta brasileira do Acordo de Paris.

Uma das atuais apostas da região é o hidrogênio verde (H2V), que não gera emissões de carbono e que tem potencial de geração a partir de eólicas em terra (onshore) e no mar (offshore) e de plantas fotovoltaicas. O hidrogênio verde pode ser usado em processos industriais e atividades dependentes de combustíveis fósseis, grandes emissoras de GEE.

Os projetos de H2V vêm sendo capitaneados pelo estado do Ceará, com o Hub do Hidrogênio Verde, enquanto o Rio Grande do Norte é líder nacional na produção de energia eólica, que pode abastecer plantas de H2V.

Panorama energético

O Brasil é um dos países com a matriz energética mais limpa do planeta. Segundo a Aneel, do total de usinas em operação, 83% são impulsionadas por fontes consideradas sustentáveis.

Apesar disso, o setor energético brasileiro ainda é responsável por 18,22% das emissões de GEE, segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG).

A região Nordeste é líder em energias renováveis. Somente em fonte eólica, ela abriga cerca de 90% da capacidade instalada do país, com mais de 20 GW, o equivalente à capacidade inteira de Portugal, proveniente de todas as fontes.

O Rio Grande do Norte e a Bahia são os maiores produtores nacionais de energia eólica. Os estados respondem por 64% da capacidade instalada do Nordeste, com valores semelhantes de potência outorgada (autorizada), sendo o RN líder em potência fiscalizada (em operação).

Hidrogênio verde

A produção de hidrogênio a partir de fontes renováveis e sem emissão de carbono, o chamado hidrogênio ‘verde’ ou H2V, é a próxima aposta da região. Ele é considerado um dos pilares da descarbonização, com potencial de uso no transporte aéreo e naval, produção de fertilizantes, metalurgia e produção de cimento e aço.

O hidrogênio é comumente produzido a partir do gás natural, conhecido como hidrogênio ‘cinza’ porque emite CO2 na sua produção. Ele também pode ser ‘azul’, quando há captura de CO2 no processo. Mais de 90% do hidrogênio brasileiro é cinza e apenas duas plantas produzem hidrogênio azul. A Petrobras detém 95% da produção nacional, utilizada para consumo interno.

Nordeste no mapa do H2V

O Brasil não aparecia no mapa internacional do H2V até fevereiro de 2021, quando foi lançado o Hub do Hidrogênio Verde no Complexo Industrial e Portuário do Pecém, no Ceará.

Enquanto isso o Rio Grande do Norte, líder nacional em energia eólica, vem estudando a implantação de um porto-indústria que tem entre suas finalidades o suporte a projetos de geração eólica offshore e produção de hidrogênio verde.

Memorandos de entendimento já foram assinados entre empresas como a Vestas e a Enterprize Energy e o Governo do RN para desenvolvimento de estudos sobre a viabilidade do porto-indústria e de projetos de energia eólica offshore, amônia verde e H2V.

Segundo a Aneel, em 2020 o Governo do RN captou cerca de R$ 8,3 bilhões em investimentos contratados para energia eólica. No primeiro semestre de 2021, foram mais R$ 5,3 bilhões. Em evento ocorrido em maio no RN, representantes do setor de energias renováveis projetaram investimentos de R$ 35 bilhões no estado para os próximos quatro anos.

A qualificação técnica também está nos planos do RN. Em abril deste ano foi assinado um acordo entre a Agência de Cooperação Técnica Alemã (GIZ) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) para a criação do primeiro Centro de Excelência em Hidrogênio Verde do país na capital Natal, com investimentos de cerca de R$ 14 milhões.

A cadeia produtiva de H2V deve gerar 5,4 milhões de empregos na União Europeia até 2050. Apesar de não haver números precisos para o Brasil, Peña estima 2,5 milhões de empregos até 2050. “Além disso, o mercado de H2V vem se tornando cada vez mais global, numa busca integrada por soluções de transição energética e descarbonização”, frisa a assessora.

Projetos eólicos offshore

No Ceará e no Rio Grande do Norte, alguns empreendimentos já se adiantaram na solicitação de licenças ambientais para produzir H2V a partir da energia eólica gerada no mar (offshore), já que a capacidade de geração de energia é maior nesses parques devido à potência das máquinas, geralmente acima de 15 MW.

De acordo com o Ibama, até 27 de janeiro de 2022 haviam sido solicitados licenciamentos para 36 empreendimentos eólicos offshore no Brasil, totalizando 5.464 aerogeradores. Em 20 de abril, já eram 54 empreendimentos, com 9.074 aerogeradores. As solicitações vêm aumentando rapidamente, mas as normas ou locais adequados para sua implantação ainda não estão bem definidas.

Os projetos offshore são grandes em extensão e geração, tornando o licenciamento mais complexo. De acordo com Fonseca, a maioria está no mesmo estágio, ou elaborando EIA/RIMA e estudos complementares ou em análise pelo Ibama. “Os que deram entrada nas licenças estão aproveitando o prazo de quase dois anos após a emissão do Termo de Referência para se capitalizar e encontrar parceiros antes de enviar o projeto”, conta.

Possíveis impactos negativos

A implantação de parques solares e eólicos para o suporte energético do H2V demandam vastas áreas continentais e marítimas, podendo gerar riscos ambientais e conflitos de uso com atividades tradicionais. Isso é crítico quando não há normas bem estabelecidas, especialmente na região que possui o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, segundo o IBGE.

Os impactos socioambientais em terra no Nordeste já são bem conhecidos. Já os possíveis impactos advindos das eólicas offshore vêm causando apreensão em algumas comunidades.

Em países da Europa e América do Norte, a instalação de parques eólicos no mar segue legislação e normativas que priorizam o controle e a mitigação de impactos como aumento do nível de ruídos produzidos pelos aerogeradores, colisão com aves em deslocamento, mudança em habitats bentônicos (fundo do mar) e pelágicos (coluna de água dos oceanos), alteração de cadeias alimentares, poluição por aumento do tráfego de embarcações, liberação de contaminantes e até aumento do calor sob linhas de transmissão.

Uma outra questão, apontada por Roberto Kishinami, do iCS, é a falta de conhecimento. “O Brasil investe quase nada em pesquisas básicas para conhecimento do que é seu território marítimo. Até mesmo os impactos da pesca – pequena comparada aos volumes globais – não são identificáveis pela falta de uma ‘linha de base’ “, destaca.

O coordenador acredita que, para não repetir os erros já cometidos nos empreendimentos onshore e evitar os impactos cumulativos de quase 10 mil aerogeradores implantados no litoral, será preciso uma avaliação socioambiental sistêmica. “É preciso delimitar se e quantas torres podem ser implantadas em cada bloco, polígono ou outra divisão geográfica, para que não haja danos irreversíveis”, alerta.

Com relação ao hidrogênio, deve-se avaliar os riscos envolvidos na manipulação, armazenamento e transporte em escala do gás e seus derivados. O H2 é muito inflamável e vaza de qualquer recipiente, permeando pelas paredes, o que exige paredes grossas, altas pressões e temperaturas de -253 °C para armazená-lo.

Já a amônia, um derivado sob a forma do qual o hidrogênio pode ser armazenado e transportado, é altamente tóxica. Mesmo pequenos acidentes podem criar grandes riscos para pessoas e ambiente.

Além disso, a produção de H2V utiliza muita água. Portanto, o risco de escassez hídrica e seca nos territórios de produção do gás, especialmente no Nordeste, precisa ser avaliado.

Utilizar água do mar dessalinizada como alternativa à doce também traz riscos. O processo de dessalinização gera um resíduo duas vezes mais salino que a água do oceano. Se descartado no mar sem tratamento, forma uma salmoura tóxica que degrada ecossistemas costeiros e marinhos, pois aumenta a salinidade e temperatura e diminui o oxigênio dissolvido na água, contribuindo para a formação de “zonas mortas”.

Desafios do Nordeste

A transição energética necessária para descarbonização mundial traz consigo muitas oportunidades e desafios, especialmente para a região Nordeste do Brasil.

Regulamentar as eólicas offshore e a produção de hidrogênio e amônia verdes, construir ou adaptar portos e infraestrutura, lidar com os altos custos e desafios de produção, armazenamento e transporte dessa energia e atender aos padrões internacionais são questões em pauta nos governos locais.

Por outro lado, obter uma produção realmente ‘limpa’ ao longo de toda a cadeia, minimizando quaisquer impactos socioambientais, deve ser a meta principal. Por isso, as discussões e o envolvimento de toda a sociedade são fundamentais, para que haja uma transição energética justa e igualitária.

Fonte: ((O)) Eco.