O objetivo foi criar um espaço anual comemorativo para reflexão sobre a importância da água, aumentando a consciência pública de que a água é um recurso finito – e que a escassez desse recurso essencial à vida, assim como sua perda de qualidade, será o grande desafio futuro a ser enfrentado pela humanidade.
Porém, a situação se agravou. Os tempos mudaram e entramos na era das mudanças climáticas, que provoca alterações no regime pluviométrico e acelera os processos de desertificação, com danos à sociedade humana, às espécies vivas e os ecossistemas hídricos.
Essa situação já era sinalizada por ocasião da Rio 92, que deu origem a três tratados internacionais que guardam estreita correlação entre si: a Convenção Quadro da Mudança do Clima, a Convenção de Diversidade Biológica e a Convenção de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos das Seca.
Na Rio 92, representantes de 179 países manifestaram-se favoráveis à criação do Dia Mundial da Água. Havia uma crescente consciência sobre ameaças de escassez hídrica global. As plenárias anteriores das Nações Unidas já tinham sido palco de fortes apelos de líderes mundiais para a implementação desta agenda prioritária. Destacou-se neste cenário Mikhail Gorbachev, que se valeu da percepção estratégica geopolítica pós-Guerra Fria em prevenir disputas por recursos naturais essenciais à subsistência da sociedade humana, especialmente a água.
De outro lado, debatiam-se cientistas contra a resistência econômica em aceitar as evidências do aquecimento planetário. Corporações petrolíferas recheavam o Produto Interno Bruto das economias nacionais e gozavam de franco protecionismo governamental. Entre os cientistas, destacou-se James Hansen, climatologista da NASA e um dos pioneiros na detecção das alterações climáticas globais, famoso pela frase “se vocês soubessem o que eu sei”.
Passados 30 anos, o que mudou? Em 2022, a ONU elege a prioridade de “dar visibilidade ao invisível”, focando a proteção dos aquíferos subterrâneos. Trata-se de iniciativa importantíssima e estratégica para a sustentabilidade hídrica, já que os aquíferos vêm sendo duramente atingidos por contaminações decorrentes de atividades humanas como o uso de agrotóxicos.
Ocorre que os aquíferos são depositários de ecossistemas muito maiores. O Relatório AR6, publicado pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) em 28 de fevereiro, deveria ser também priorizado, já que seus componentes estão relacionados à necessidade de um extraordinário esforço da humanidade para a preservação dos ecossistemas produtores de água.
Para nós, sul-americanos, há elementos estruturais de sustentabilidade hídrica em jogo. Há comprovação científica que em grande parte do continente, dos Andes ao Atlântico, funciona um grande sistema hidrológico de chuvas alimentado pela Floresta Amazônica.
Essa vastidão continental tropical de florestas, campos e conglomerados de cidades só existe porque a transposição da umidade por meio dos rios voadores provenientes da Amazônia, mantendo a umidade essencial à vida e para as atividades humanas.
Assim, há uma verdadeira máquina de chuva que abastece os corpos d ‘agua e aquíferos continente adentro – e que necessita de proteção para continuar a viabilizar as condições vitais para o funcionamento dos diferentes biomas brasileiros, do Pantanal ao Cerrado e à Caatinga, e da Mata Atlântica aos Pampas.
Essas comprovações são mais recentes. Por ocasião da instalação oficial do Dia Mundial da Água, comemorado pela primeira vez em 22 de março de 1994, persistiam sérias lacunas na compreensão da dinâmica dos ecossistemas hídricos e suas conexões com a sustentabilidade. Era comum jornalistas colocarem em dúvida se a água era mesmo um recurso finito.
Frequentemente era preciso exemplificar a perda de umidade nos ecossistemas demonstrando a perda de neblina que historicamente cobria o início planalto de Piratininga no sentido litoral-interior, ou demonstrando que a “São Paulo da garoa” não mais existia, ou ainda apontando documentos históricos, como uma carta de José de Anchieta para seu Prior, em Portugal, relatando que a temperatura no planalto de Piratininga, coberto pela floresta atlântica, era quase constante fosse inverno ou verão – e que chovia o ano todo, dia sim, dia não.
Hoje não resta mais dúvida científica sobre o tema. As mudanças climáticas estão caminhando para a 27ª reunião global (COP 27), que ocorrerá no Egito. Os climatologistas das redes de televisão usam constantemente imagens satélite demonstrando o trajeto dos rios voadores e sua conexão com a previsão climática.
Os avanços da ciência e da comunicação não foram acompanhados pela elaboração de políticas públicas protetivas. A proteção da água para a América do Sul demanda estratégias territoriais amplas que possam dar cobertura aos gigantescos ecossistemas produtores de interesse internacional. O território Pan-Amazônico, incluindo Brasil, Bolívia, Colômbia e Peru, está ligado pelo fluxo hídrico com o Cone Sul, na formação da Bacia Hidrográfica do Rio Paraná e toda a sua ramificação com a Bacia do Plata, incluindo uma ampla área de influência que abrange, entre tantos outros, da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco aos rios que nascem no Planalto Central.
Este macroecossistema hídrico alimentado pela Floresta Amazônica continua sofrendo com a omissão governamental. Ataques criminosos continuam a espoliar grandes áreas territoriais de floresta, como aponta o dado do desmatamento de 198 km² registrado em fevereiro. Ao mesmo tempo, estudos científicos recentes do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e da revista Nature demonstram os impactos impostos à floresta, que perde resistência e começa a dar sinais de declínio.
É preciso ressaltar que, em 30 anos, tivemos avanços normativos na perspectiva da gestão democrática da água. A Lei das Águas, n° 9.433, de 1997, completa 25 anos, mas está ameaçada pelo PL 4546 de 2021, que pretende instituir a Política Nacional de Infraestrutura Hídrica, uma espécie de estruturação para facilitação do hidronegócio, apesar de amplo reconhecimento internacional da água como Direito Humano Fundamental (Deliberação das Nações Unidas – Resolução 64/A/RES/64/292, de 28.07.2010).
Ressalto a importância de implementar para a gestão da água, sem simulações e de forma verdadeira, o direito à informação e à participação social para a tomada de decisões que proporcionam acesso à justiça em matéria ambiental, conforme nos ensina o Acordo de Escazú, de 2018.
Retrocessos normativos têm sido uma constante no Brasil, como os avanços do agronegócio sobre o Código Florestal Brasileiro e atualmente com os PLs que favorecem grilagem, garimpo e o licenciamento facilitado para a Amazônia e o Brasil. Estes processos estão agora avançando ainda mais, debaixo do governo populista e negacionista de Jair Bolsonaro, atrelado ao agronegócio e em campanha para reeleição. Felizmente, sobre tudo isso, paira a proteção da Constituição Federal, que determina obrigatoriedade no estabelecimento de meios para a manutenção da integridade dos biomas e ecossistemas essenciais à proteção da vida.
Depois de 30 anos da criação do Dia Mundial da Água e dos tratados internacionais de proteção do Clima, da diversidade biológica e de combate à desertificação, estamos atrasadíssimos e em débito com os compromissos éticos reconhecidos internacionalmente – e impressos na Constituição Federal – em não empobrecer a Terra e os meios de sobrevivência para a humanidade e a biodiversidade.
Fonte: ((O))eco.