A Boiada Continua Passando

Após a aprovação na Câmara, na noite da quarta-feira (09/02), do Projeto de Lei (PL) 6.299/02, apelidado de “Pacote do Veneno”, o Congresso se prepara para votar outras 44 propostas priorizadas pelo governo. Destas, onze têm relação direta com o campo e dez trazem impacto na área ambiental, tais como mineração em terras indígenas, regularização fundiária, mudanças no licenciamento ambiental, flexibilização de concessões florestais e marco temporal em terras indígenas.

Publicada na edição de ontem do Diário Oficial da União, a portaria 667 indica que Jair Bolsonaro pretende “passar a boiada” já nos primeiros meses de 2022, ou seja, antes que a Casa se volte aos debates eleitorais.

Dois dos itens mais impactantes do chamado “combo da morte” têm as digitais de integrantes da bancada ruralista. O deputado federal Neri Geller (PP-MT) foi o relator da nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental (PL 3729/04), apelidada de “a mãe de todas as boiadas”. Após a aprovação na Câmara, a proposta chegou ao Senado sob o número 2.159/21. Ela restringe, enfraquece ou, em alguns casos, até extingue parte importante dos instrumentos de avaliação, prevenção e controle de impactos socioambientais de obras e atividades econômicas no país.

Atual vice-presidente da FPA, Geller já ocupou o cargo de ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) no governo de Dilma Rousseff, em 2014, e por duas ocasiões foi secretário de Política Agrícola do Ministério, em 2013 e 2016. O ruralista foi citado em investigações quanto à invasão de terras públicas e fraude na regularização de terras destinadas à reforma agrária no Mato Grosso, em 2014, como mostrou reportagem do De Olho nos Ruralistas.

A agenda legislativa prioritária traz itens como o PL 490/07, do Marco Temporal, que proíbe a ampliação de Terras Indígenas (TIs) já demarcadas e permite a exploração por garimpeiros, e o PL 191/2020, que regulamenta a mineração nas TIs, possibilitando inclusive a construção de hidrelétricas sem entraves. Ambos estão em tramitação na Câmara e contam com o respaldo da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e de seus financiadores.

Com 280 membros, de diferentes partidos, a bancada ruralista, representada pela FPA, é uma das maiores, mais influentes e mais organizadas do Congresso. Em ano eleitoral, suas pautas tendem a ter ainda mais apoio.

Dois dias depois, foi aprovado o decreto 10.966 que cria o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Pró-Mape). O programa estimula a “mineração artesanal” e define como área de atuação prioritária a Amazônia Legal (Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Amapá, Tocantins, Mato Grosso e 181 municípios do estado do Maranhão).

Em nota oficial do Planalto, os objetivos do Pró-Mape foram descritos como “integração e fortalecimento das políticas setoriais, sociais, econômicas e ambientais para o desenvolvimento sustentável da mineração artesanal e em pequena escala, estimulando as melhores práticas, a formalização da atividade e a promoção da saúde, da assistência e da dignidade das comunidades envolvidas.”

Ele aparece no Mapa das Terras dos Parlamentares, projeto cartográfico do “De Olho”. O ex-ministro possui uma propriedade rural de 726 hectares em Diamantino (MT), onde o povo Paresi disputa parte do território, e uma fazenda em Sorriso (MT), local de conflito com os povos Kaiabi, Arapiaká e Munduruku. Nas eleições de 2018, declarou à Justiça Eleitoral R$ 9.018.296,15 em bens, montante dez vezes maior que o declarado doze anos antes.

Um relatório da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Ministério Público Federal mostra que 28% do ouro comercializado em 2019 e 2020 tinha procedência irregular (ilegais ou potencialmente ilegais). Destes, 75% eram provenientes de estados da Amazônia Legal, quase a metade do estado do Pará.

O Mapbiomas mostra que a Amazônia concentra 93,7% do garimpo do Brasil. De 2010 a 2020, a área de garimpo em territórios indígenas e unidades de conservação expandiu 495% e 301%, respectivamente. Em 2020, metade de toda a área de garimpo estava em territórios indígenas e unidades de conservação, com as maiores áreas concentradas no Pará (povos Kayapó e Munduruku, e unidade Apa, do Tapajós).

E é exatamente no Pará onde está em construção a North Star Refinaria, que será a maior refinaria de ouro do Brasil. A refinaria, entretanto, está associada à família Goetz, com histórico de atuar no mercado clandestino de ouro.

A calculadora de impactos do garimpo ilegal, criada pela organização Conservação Estratégica (CSF) e pelo Ministério Público Federal, estima que mais de três quartos do custo associado ao garimpo ilegal em 2019 e 2020 seria decorrente de problemas de saúde em decorrência da contaminação por mercúrio.

O garimpo na Amazônia nada tem de artesanal, nem de sustentável, nem de mecanismo de geração de melhorias de condições locais. É apenas uma das atividades que compõem um modelo de desenvolvimento predatório que não gera benefícios locais, que não respeita os povos da Amazônia e que deixa cicatrizes profundas de desigualdade social e destruição ambiental.

A boiada continua passando, e as consequências atingem todos os brasileiros. O que acontece na Amazônia afeta o regime de chuvas e a poluição do ar (resultado das queimadas) do país.

Vivemos o embelezamento da desgraça. Covid-19 é uma gripezinha. Ômicron é bem-vinda. Agrotóxico passa a se chamar pesticida. E o garimpo virou mineração artesanal. Mudar para esse nome, numa tentativa de embelezar uma atividade ilegal, não muda suas consequências perversas: desrespeito à demarcação de territórios indígenas, danos à saúde das comunidades indígenas e da população local, e destruição ambiental.

Fontes: Folha SP, BBC, Racismo Ambiental.