A Reserva de Biosfera do Mar Negro, na costa sul da Ucrânia, é um paraíso para as aves migratórias. Mais de 120 mil delas passam o inverno revoando em suas margens. Um espectro multicolorido de espécies raras – a águia-de-cauda-branca, o merganso-de-peito-vermelho e o perna-de-pau ou maçaricão, para citar apenas algumas – fazem seus ninhos entre as águas e pântanos protegidos.
A reserva também abriga o rato-toupeira-cego, ameaçado de extinção, o golfinho-nariz-de-garrafa do Mar Negro, flores raras, inúmeros moluscos, dezenas de espécies de peixes – e, nas últimas semanas, um exército invasor.
“Hoje o território da reserva está ocupado pelas tropas russas”, disse Oleksandr Krasnolutskyi, vice-ministro de Proteção Ambiental e Recursos Naturais da Ucrânia, em um e-mail no mês passado. “Atualmente não há informações sobre perdas ambientais”.
Mas a atividade militar na área provocou incêndios grandes o suficiente para serem vistos do espaço, gerando preocupações sobre a destruição de habitats críticos para a reprodução das aves.
“Nós vimos o que está acontecendo na Ucrânia”, disse Thor Hanson, biólogo independente de conservação e especialista em consequências das guerras para o meio ambiente. “E estamos chocados e horrorizados com o custo humano em primeiro lugar, mas também com o que está acontecendo com o meio ambiente lá”.
Desde que as paraças russas invadiram a Ucrânia, em fevereiro, a atenção do mundo se concentrou nas cidades fortemente bombardeadas do país. Mas a Ucrânia, em uma zona de transição ecológica, também abriga pântanos e florestas vibrantes e uma grande faixa de estepe virgem. As tropas russas já entraram ou realizaram operações militares em mais de um terço das áreas naturais protegidas do país, disse Krasnolutskyi: “Seus ecossistemas e espécies se tornaram vulneráveis”.
Relatórios do local e pesquisas sobre conflitos armados anteriores sugerem que o efeito ecológico do conflito pode ser profundo. As guerras destroem habitats, matam a vida selvagem, geram poluição e modificam inteiramente os ecossistemas, com consequências que se propagam ao longo de décadas.
“O meio ambiente é a vítima silenciosa dos conflitos”, disse Doug Weir, diretor de pesquisa e política do Observatório de Conflitos e Meio Ambiente, organização sem fins lucrativos com sede na Grã-Bretanha.
Paisagens Marcadas
A guerra é um ato de destruição. E, como sugerem os estudos, afeta desproporcionalmente os ecossistemas mais importantes do planeta. De 1950 a 2000, mais de 80% dos maiores conflitos armados do mundo ocorreram em locais de grande biodiversidade, áreas ricas em espécies nativas, mas ameaçadas, descobriram Hanson e seus colegas em um estudo de 2009.
A mensagem para todos, disse Hanson, “foi que, se estamos preocupados com a biodiversidade e a conservação no mundo, precisamos nos preocupar também com conflitos e padrões de conflito”.
Houve pouca pesquisa em larga escala sobre o efeito ecológico da guerra, mas, em um estudo de 2018, os cientistas descobriram que o conflito armado estava correlacionado com o declínio da vida silvestre nas áreas protegidas da África. As populações de animais tendem a ficar estáveis em tempos de paz e declinar durante a guerra, descobriram os pesquisadores, e quanto mais frequentes os conflitos, mais acentuados os declínios.
Em alguns casos, a destruição ambiental é uma tática militar explícita. Durante a Guerra do Vietnã, os militares americanos pulverizaram desfolhantes em grandes áreas da selva para diminuir as florestas e privar as paraças inimigas de cobertura. E as paraças armadas costumam explorar “recursos saqueáveis”, como petróleo e madeira, para financiar seus esforços de guerra, disse Hanson.
A Ucrânia está repleta de fábricas de produtos químicos e instalações de armazenamento, depósitos de petróleo, minas de carvão, gasodutos e outros locais industriais, que podem liberar enormes quantidades de poluição se forem danificados. Alguns já foram atingidos.
Depois, há o medo nuclear. A Ucrânia tem 15 reatores nucleares em quatro usinas e a maior delas já foi palco de intensos combates. “As ações militares perto das usinas nucleares podem levar à contaminação radioativa em larga escala de áreas não apenas na Ucrânia, mas também muito além de suas fronteiras”, disse o vice-ministro Krasnolutskyi. Danos a locais de armazenamento de resíduos nucleares também podem produzir contaminação significativa.
Os cientistas aprenderam muito sobre os efeitos em longo prazo da radiação em animais e ecossistemas a partir de estudos realizados na Zona de Exclusão de Chernobyl, na Ucrânia, que foi quase totalmente abandonada desde a catástrofe na usina nuclear de mesmo nome em 1986.
Pesquisas no local revelaram que a radiação não apenas causou deformidades em animais individuais, como também afetou populações inteiras. “Vemos declínios dramáticos na abundância e menor diversidade de organismos nas áreas mais radioativas”, disse Timothy Mousseau, biólogo na Universidade da Carolina do Sul.
Lobos-cinzentos, raposas-vermelhas, cães-guaxinins, linces e javalis residem na zona de exclusão, assim como os cavalos de Przewalski, ameaçados de extinção, que foram introduzidos na área cerca de duas décadas atrás.
Mas a tomada do local pela Rússia criou uma enorme perturbação, disse Mousseau: “Todo esse barulho e atividade provavelmente terão afastado os animais”.
Cascatas Ecológicas
Durante a guerra civil em Moçambique, que durou de 1977 a 1992, a densidade populacional de nove grandes herbívoros – incluindo elefantes, zebras, hipopótamos e búfalos – diminuiu mais de 90% no Parque Nacional da Gorongosa.
Enquanto isso, o colapso das populações de carnívoros – leopardos e cães selvagens africanos desapareceram do parque – provocou mudanças comportamentais em suas presas. O tímido cervo-da-floresta, uma espécie de antílope, passou a ficar mais tempo em planícies abertas, onde se banqueteou com novas plantas, suprimindo o crescimento da fauna nativa.
A insegurança alimentar e a instabilidade econômica podem ameaçar até mesmo animais abundantes. Após o colapso da União Soviética em 1991, levando ao aumento das taxas de pobreza na Rússia, a população de alces, javalis e ursos marrons diminuiu, de acordo com um estudo liderado por Eugenia Bragina, coordenadora de desenvolvimento de capacidade científica no programa Arctic Beringia da Wildlife Conservation Society.
Refúgio e Reconstrução
Por todos os danos que a guerra pode causar, em casos isolados, os conflitos humanos podem servir de escudo para a natureza.
O exemplo mais famoso é a Zona Desmilitarizada da Coreia, uma estreita faixa de terra que serve de amortecedor entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul. Está totalmente fora dos limites dos humanos, protegida por guardas, cercas e minas terrestres. Mas, na ausência de pessoas, oferece refúgio para flora e fauna raras, incluindo grous-de-coroa-vermelha, ursos-negros asiáticos e possivelmente tigres-siberianos – as minas podem representar um perigo para os animais terrestres maiores.
Em alguns casos, a guerra também pode atrapalhar as indústrias extrativas. Durante a Segunda Guerra Mundial, a pesca comercial no Mar do Norte cessou quase inteiramente por causa da requisição de barcos de pesca, restrições à sua movimentação e recrutamento de pescadores para a guerra. As populações de muitas espécies de peixes colhidas comercialmente se recuperaram.
Mas os ganhos podem ser temporários. Nos primeiros anos da guerra civil na Nicarágua, as florestas ao longo da costa atlântica do país voltaram a crescer à medida que as pessoas fugiam, abandonando suas fazendas. Mas com o fim da guerra os moradores voltaram e o desmatamento recomeçou; quase duas vezes mais terra foi desnudada durante esse período do que havia sido reflorestada durante o início da guerra, descobriram os cientistas.
Tais descobertas, dizem os especialistas, falam sobre a necessidade urgente de considerar a conservação imediatamente após um conflito, quando o meio ambiente pode estar em risco, enquanto os países tentam reconstruir a infraestrutura e as economias.
A restauração é possível. No Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique, um intenso projeto de recuperação está em andamento desde a década de 2000. Inclui patrulhas aprimoradas contra a caça furtiva, o desenvolvimento de uma indústria de turismo de vida silvestre e esforços para melhorar a segurança econômica e alimentar das comunidades locais.
Predadores de ponta, incluindo leopardos e cães-selvagens, foram reintroduzidos. Grandes populações de herbívoros estão se recuperando e “restabelecendo o controle sobre espécies de plantas invasoras”, disse Pringle, que fez parte do conselho consultivo do projeto. “A Gorongosa é, eu diria, o modelo líder mundial de resiliência ecológica após um conflito devastador”, disse ele.
Fontes: New York Times, Folha SP, Euronews.