A dúvida é se a civilização pode mesmo travar esta guerra contra a vida sem se destruir e sem perder o direito de se chamar de civilizada. (Rachel Carson, Primavera Silenciosa, 1962)
As palavras de Rachel Carson não foram em vão. Muito embora a atual tragédia provocada pelos agrotóxicos possa sugerir o contrário, seríamos incapazes de dimensionar a escala que ela assumiria não fosse a corajosa denúncia feita por essa bióloga norte-americana quando, em 1962, publicou “Primavera Silenciosa”. Seu livro representou um marco no despertar do ecologismo político ao desnudar publicamente os efeitos nocivos de uma tecnologia transplantada da indústria bélica para a agricultura e que se disseminou globalmente após a Segunda Guerra Mundial com o projeto político-ideológico da Revolução Verde.
Não sem razão, Carson questionou o sentido de uma civilização que optou por travar uma guerra contra a vida. De fato, os agrotóxicos não podem ser compreendidos senão como armas de uma guerra não declarada, cujas vítimas humanas e não humanas são ocultadas por uma ciência cerceada por interesses econômicos ou justificadas por esta mesma ciência como efeitos colaterais do emprego de uma tecnologia apresentada como indispensável.
A retórica da ocultação
Designar os agrotóxicos como defensivos agrícolas é o artifício retórico mais elementar para dissimular a natureza nociva desses produtos. Por um lado, ele sugere que os agrotóxicos supostamente protegem os cultivos; por outro, oculta os efeitos deletérios desses produtos sobre a saúde humana e o meio ambiente.
A Tese do “Mal Necessário”
Embora nem sempre repercutida de forma tão explícita e autoritária, a tese do mal necessário é veiculada cotidianamente pelos meios formadores de opinião pública, criando as condições para que se instaure um clima de salve-se quem puder.
Em um mundo ideologicamente dominado pelos preceitos do liberalismo econômico, o lugar de busca da salvação individual é o mercado, a instituição que supostamente deveria assegurar aos cidadãos a liberdade de escolha sobre o que se consome.
Não sem razão, diante do crescente esclarecimento público quanto aos riscos dos agrotóxicos para a saúde, a demanda por alimentos orgânicos cresce a taxas exponenciais, inflacionando um mercado só acessível para os que têm suficiente poder aquisitivo para consumir alimentos livres de agrotóxicos e outros contaminantes industriais.
No entanto, a venda dos alimentos orgânicos com preço superior ao dos convencionais não é uma condição natural inscrita no livro do Gênesis, como quer fazer crer uma senadora ruralista. A sobrevalorização monetária se deve a que esse segmento de mercado evolui como um nicho estruturado para vincular comercialmente poucos produtores a poucos consumidores.
Nesse contexto, a noção de liberdade de escolha não pode ser compreendida senão como mais uma mistificação de um sistema de poder econômico-ideológico erigido sob a égide da propaganda enganosa.
Contrariando a narrativa justificadora do mal necessário, são fartas as evidências documentadas em todos os quadrantes do planeta que comprovando que a produção de alimentos intoxicados não é uma necessidade irremediável para assegurar o abastecimento de uma população mundial crescente.
Uma extensa compilação de estudos realizada por pesquisadores da Universidade de Michigan (EUA) demonstrou que os sistemas orgânicos de produção sistematicamente alcançam rendimentos físicos iguais ou superiores aos dos sistemas que lançam mão de agroquímicos (BADGLEY et al., 2007).
Além de confirmarem que a crescente demanda por produção alimentar no mundo pode ser tecnicamente atendida sem o emprego de agrotóxicos e da expansão das áreas agrícolas, esse e muitos outros estudos demonstram que a agricultura de base ecológica é capaz de oferecer respostas consistentes a um conjunto de desafios ambientais, econômicos e sociais que colocam a humanidade em uma verdadeira encruzilhada histórica. Razão pela qual, desde a crise alimentar de 2008, vários órgãos das Nações Unidas vêm divulgando importantes documentos que apontam a agroecologia como o enfoque mais adequado para a reestruturação dos modernos sistemas agroalimentares (IAASTD, 2009; DE SCHUTTER, 2011; UNCTD, 2013).
Alimentação saudável é aquela capaz de possibilitar, de forma permanente, alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e que estejam inseridos em práticas alimentares que promovem saúde com respeito à diversidade cultural, sustentabilidade ambiental, cultural, econômica e social.
Apesar de constitucional, o cenário é contrário: o país é novamente assombrado pelo retorno da fome e batemos novos recordes de utilização de agrotóxicos.
Em 2008, o país já era líder mundial de consumo dessas substâncias. Não satisfeito, desde 2019 aprovou 475 novos agrotóxicos, abocanhando novos troféus: líder isolado na quantidade de substâncias utilizadas no campo e o de velocidade de aprovação de novos agrotóxicos, já que o tempo médio para conclusão desse processo até então era de 6 a 8 anos.
Entre herbicidas, fungicidas e inseticidas, apenas 8% deles são compostos biológicos para o controle de pragas, sendo compostos químicos os 92% remanescentes.
Mas não estamos sozinhos ao dividir esse bolo de agrotóxicos. Em editorial publicado (link restrito para assinantes) na revista científica Nature em 2020, além do destaque para a piora da nova regulamentação do Brasil, destacaram-se implicações tanto para a saúde pública do país como para nossos parceiros comerciais, que importam alimentos produzidos dessa forma. São nossos parceiros comerciais: Estados Unidos, China, Japão e Europa. Ironicamente, aqueles que têm limitado em suas lavouras o uso de alguns dos agrotóxicos que passaram a nos vender.
Em tempos de negacionismo, sempre há os que não querem olhar para cima, para frente, nem para lugar nenhum além dos umbigos. E assim seguem-se as retóricas da ocultação e de justificação.
Essa falsidade é denunciada pelos especialistas da ONU no relatório Report of the Special Raporteur on the righ to food, o qual também alerta sobre as consequências catastróficas do uso dos agrotóxicos e debita à sua indústria a”negação sistemática de danos” e “táticas não éticas de marketing”. Os autores desse relatório disseram que “É hora de criar um processo global de transição para uma produção alimentar e agrícola mais segura e saudável”.
O relatório da ONU também afirma que os agrotóxicos têm “impactos catastróficos no meio ambiente, saúde humana e na sociedade como um todo”, incluindo cerca de 200 mil mortes por ano causadas por intoxicações. Os autores do texto disseram que “É hora de criar um processo global de transição para uma produção alimentar e agrícola mais segura e saudável”.
Essa mesma agricultura instantaneamente produtivista que bate recordes em plena pandemia em que o país passa fome, vulnerabiliza solos e os torna crescentemente “dependentes químicos” dos agrotóxicos, e perdem produtividade.
Longe de ser justificativa meramente técnica, o uso crescente de agrotóxicos no Brasil parece ser mais uma peça dentro de discussões ainda muito delicadas que envolvem o agronegócio.
Setor dependente da concentração de terras nas mãos de latifundiários, que têm interesse na manutenção de monoculturas e que flertam com movimentos políticos que certificam esses interesses, tais como ocorreu com a proposição e aprovação do PL 6.299/2002, projeto de lei carinhosamente apelidado de “PL do Veneno”, que assegurou a passagem da boiada.
“Usar mais agrotóxicos não tem nada a ver com a eliminação da fome. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), somos capazes de alimentar 9 bilhões de pessoas hoje. A produção está definitivamente aumentando, mas o problema é a pobreza, a desigualdade e a distribuição [de alimentos]”. (Hilal Elver, relatora especial da ONU sobre o direito à alimentação).
Fontes: Abrasco, Greenpeace, AFISA-PR, Poder 360º