É trágico assistir mais uma vez a perda de vidas humanas, em função dos deslizamentos e inundações. O pior é que esta realidade se repete de norte a sul do país.
As principais consequências dos fenômenos naturais relacionados aos desastres naturais no Brasil são os deslizamentos de encostas e as inundações, que estão relacionados a fortes e longos acontecimentos pluviométricos, que se repetem a cada período chuvoso mais rigoroso.
Ainda que as inundações sejam os processos que ocasionam as maiores perdas econômicas e os impactos mais consideráveis na saúde da população, são os deslizamentos que acarretam o maior número de vítimas fatais.
O deslizamento é um fenômeno causado pelo escorregamento de materiais sólidos, como rochas, solos, vegetação e material de construção em locais inclinados, denominados de encostas.
Os principais impactos causados pelos deslizamentos estão relacionados à forma de relevo, estrutura geológica do terreno, além das ações humanas que intensificam os deslizamentos, como retirada da cobertura vegetal, sendo esta responsável pela consistência do solo e que impede, por meio das raízes, o escoamento da água, habitação em locais impróprios, oferecendo condições propícias para o desenvolvimento desses deslizamentos.
No Brasil, as pessoas que mais sofrem com os impactos causados pelos deslizamentos, são as que possuem baixo poder aquisitivo, uma vez que suas condições sócio econômicas não lhe permitem pagar por moradias seguras.
Apesar dessas áreas de risco serem perigosas e proibidas para moradia, o controle é muito complicado e lento, o que impossibilita a fiscalização contínua. E quando ocorre a invasão, retirar os moradores não é uma tarefa tão simples, visto que há por detrás um processo burocrático.
Outro detalhe, o clima tropical, como é o caso do Brasil, existem grandes índices de chuva no verão, deste modo, as encostas naturalmente são locais propícios ao deslizamento. É por esse motivo que, muitas vezes durante os períodos chuvosos, veiculam notícias de enchente e deslizamento em áreas marginalizadas, acarretando prejuízos e vítimas fatais.
Neste momento é compreensível que, como em todos os anos chuvosos em que tragédias se repetem, perguntemos sobre qual é o limite entre a fatalidade e a irresponsabilidade. Para responder, há vários aspectos a considerar.
No verão de 2021-2022 temos a tempestade climática perfeita, com a conjunção de fenômenos como La Niña, a Zona de Convergência do Atlântico Sul, um corredor de umidade que potencializa o índice de chuvas continente adentro.
A constatação de que os eventos episódicos como estes serão potencializados pelas alterações climáticas é conhecida da ciência. No Brasil, já registramos um aumento da temperatura média, desde a revolução industrial, em 1,7 grau centígrado, conforme noticiou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) ao Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC).
Para exemplificar do ponto de vista econômico, a atual escalada da intempestividade climática do ano de 1900 até 2021, segundo dados do CDP Worldwild, significou um custo ao Brasil, na reparação de danos por chuvas e secas, de cerca de US$ 22,7 bilhões. De acordo com a pesquisa, as chuvas ceifaram cerca de 2.893 vidas no período e deixaram meio milhão de desabrigados.
O segundo ponto a refletir é sobre como a sociedade irá enfrentar as mudanças climáticas e as crescentes vulnerabilidades decorrentes da má ocupação do território, da precariedade das moradias e da falta de obras de contenção e drenagem. .
As mudanças climáticas não retiram as responsabilidades dos governos, só fazem reforçar a falta de ações e o descaso do poder público. Isso porque, do ponto de vista técnico, para a ocupação urbana de áreas instáveis ou inundáveis, a geotecnologia tem dado, até o momento, as respostas corretas.
O Brasil não tem feito sua lição de casa. O governo federal vem sucateando o sistema de monitoramento meteorológico, o Inpe. Em São Paulo, o Instituto Geológico (IG) foi extinto pelo governo Dória.
O IG detinha todo o conhecimento e mapeamento do território paulista. Hoje os técnicos encontram-se precariamente lotados no Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA), onde pesquisas sobre mudanças climáticas, antes realizadas pelo IG, encontram-se paralisadas.
As Cartas de Risco geradas por especialistas do IG e outras instituições de pesquisa do Brasil apontam as medidas necessárias para fazer frente às situações existentes, assim como há metodologia para o preparo da Defesa Civil e da Gestão de Risco. Portanto, não há desconhecimento dos riscos atuais pelas autoridades públicas, seja para orientar aspectos preventivos ou corretivos. Há falta de responsabilidade e de investimento.
De outro lado convivemos com a ilegalidade da ocupação urbana desordenada, motivada por exclusão social e especulação imobiliária criminosa. Cidades mais atingidas por deslizamentos tiveram ‘boom’ habitacional em áreas de risco Some-se a isso a crise econômica que se instalou em função da incompetência dos últimos governos, levando ao aumento de ocupação das áreas de risco.
Após anos de leniência governamental, estamos entrando em uma rota perigosa e sem retorno. O sexto relatório do IPCC (IR6) apontou, nos dias que antecederam a COP26, em novembro do ano passado, que a incidência de eventos extremos vem apresentando um processo de crescimento maior do que o esperado, à razão de 38 vezes mais a cada período de 50 anos.
De outro lado, a contenção de lançamento dos Gases Efeito Estufa (GEE), especialmente pelos países mais ricos e poluidores do G20, tem sido insuficiente para deter o aquecimento global.
A realidade climática exige um novo e eficiente modelo de governança. Além de considerar os aspectos sociais e econômicos, há de se promover programas habitacionais que proporcionem segurança à população, além de intensificar a fiscalização para que as pessoas não venham a habitar as verdadeiras armadilhas que são as áreas de risco.
Quando o poder público faz vistas grossas para as situações de risco, passa uma sensação de falsa segurança para aqueles que ali habitam. Assim, não existe no cenário atual qualquer imprevisibilidade que justifique a inação. A ciência aponta o cenário e prediz a vulnerabilidade. A tragédia decorre da inação, de um estado de inércia e irresponsabilidade governamental.
O cenário vai piorar, diz o IPCC, mas, em um Estado democrático como o Brasil, quem irá decidir se os governos federal, estaduais e municipais irão piorar será a própria sociedade. Mesmo se não houver estadistas no comando das instituições, à altura de empreender de forma prioritária a proteção da sociedade, resta cobrar na justiça as garantias constitucionais de proteção à vida.
Este é o momento e o limite para que a sociedade organizada atente para o estado crescente das vulnerabilidades e dos riscos decorrentes do descaso governamental potencializados pelas mudanças climáticas — e para que o Ministério Público e a Defensoria Pública se apropriem dessas agendas fundamentais para o bom exercício e cumprimento de suas funções.
Fontes: BBC News, Oeco, Ascon/Cenaden.