A transformação de Porto Alegre em um polo de atração econômica e financeira regional – e do estado do Rio Grande do Sul (RS) em um território dedicado ao agronegócio – são o reflexo de um modelo desenvolvimentista insustentável, o que Naomi Klein chama de ‘capitalismo do desastre’.
A final do ano passado, no periódico indexado Atmosphere, pesquisadores brasileiros publicaram um importante estudo sobre as características do padrão atmosférico precursor da ocorrência de desastres socioambientais na região Sul do Brasil.
O artigo apresenta modelos estatisticamente robustos com base nos quais é possível predizer os efeitos da passagem das perturbações (sistemas frontais) sobre o território da Região Sul do Brasil (RSB) e do RS, que se associam à aceleração da mudança climática produzindo a intensificação na frequência e magnitude dos eventos meteorológicos extremos.
O estudo também analisou as áreas potencialmente mais expostas no RS entre 2016 e 2020. A distribuição espacial dos municípios mostra que os que mais foram atingidos são o litoral de Santa Catarina e a região Centro-Leste do Rio Grande do Sul. Cerca de 64,1% dos desastres registrados pelo Cemaden foram de natureza hidrológica, o que corrobora o reportado no Atlas Digital de Desastres no Brasil.
A responsabilidade do desastre não é da água nem do clima
A água não encontra onde sair em Porto Alegre, como quando você precisa vomitar por uma indigestão e procura conter o processo natural que puxa para você esvaziar sua barriga. Para entender o desastre de Porto Alegre e do RS, esta prosaica metáfora é muito útil.
Estudos sobre a dimensão socioambiental dos desastres têm ilustrado há várias décadas que a chuva não é a culpada; ela só revela a insustentabilidade da gestão política e econômica do território pelas pressões associadas à urbanização, como a especulação imobiliária e o desmatamento.
No caso do RS, por exemplo, o Instituto Geral de Perícias do estado alertou, em 16 de dezembro de 2022, que as áreas atingidas por desmatamento ilegal haviam crescido 187% em três anos…
Deixar apodrecer para se apropriar com a reconstrução
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) de Porto Alegre trata de como o Município promoverá a sustentabilidade por meio do monitoramento da densificação através de patamares máximos de densidade por Macrozona e Unidades de Estruturação Urbana. Porém, o objetivo da internacionalização da cidade e o marketing urbano têm produzido um desenvolvimento urbano totalmente insustentável.
Os ‘Predadores da Cidade’, desempenham um papel central ao interior de um paradigma de desenvolvimento financeirizado promovendo a construção sem freios de prédios que aumentam a temperatura, poluem visualmente a cidade, especulam com o tecido urbano, cortam árvores e destroem o patrimônio arquitetônico.
As lógicas econômicas prevalecem sobre o direito à existência na transformação urbana da América Latina: abandona-se ou deixa-se apodrecer áreas de interesse para que o capital financeiro, apoiado pelos governos locais, aproprie-se das áreas centrais e pericentrais.
Segue-se então a chegada de empresas incorporadoras em áreas próximas ao centro. Essas áreas são identificadas pelo mercado e pelo Estado como zonas decadentes e marginalizadas, e os moradores dali, empobrecidos e vulneráveis, são expulsos até áreas mais periféricas e com alto risco ambiental.
A Folha de S. Paulo do último dia 8 de maio lembrou como o governador Eduardo Leite mudou quase 500 normas ambientais em 2019 em favor dos interesses financeiros no setor do agronegócio e da construção, sem debate público ou consulta com a sociedade civil.
O Capitalismo do desastre se manifestou em Porto Alegre
Um dos grandes desafios no processo de reconstrução do Rio Grande do Sul é não ser pautado pelos mesmos modelos desenvolvimentistas que criaram as condições de insustentabilidade e de risco de desastres. Como os processos de reconstrução e recuperação vão reduzir a insustentabilidade ambiental, planejar o uso do solo e a recuperação socioambiental da bacia, assim como as desigualdades de renda e de poder político, as condições de vulnerabilidade social?
No contexto latino-americano, exemplos dessa lógica foram identificados em pesquisas sobre o desastre associado ao terremoto de 2010 no Chile e na Região Serrana do Rio de Janeiro em 2011.
Dentre as formas de capitalismo de desastre estão o superfaturamento de serviços emergenciais em benefícios de empresas próximas a grupos políticos que estão no poder, como os casos de corrupção reportados durante a catástrofe de 2011 na Região Serrana do Rio de Janeiro. Ou ainda, a classificação de zonas urbanas como “áreas de risco” a fim de expropriar os pobres durante o momento da resposta e reconstrução, para anos depois, descongelá-las a fim de utilizá-las para construção de outros projetos de interesse dos grupos políticos que estão no poder.
Reconstrução das condições para outros desastres ou territórios para a vida?
As conclusões deste artigo privilegiam três chamados urgentes: Primeiro, a ausência de visibilidade e debate público sobre os processos de reconstrução em desastres no Brasil. A reconstrução corre o risco de ser guiada pela reprodução das mesmas lógicas do capitalismo do desastre.
Segundo o modelo de crescimento econômico que causou o desastre representa o verdadeiro fator de risco. Desastres anteriores, tanto no Brasil como em outras partes do mundo, revelaram que o processo de reconstrução é marcado pela dominação de grupos com poder político e econômico, os quais utilizam o “governo de emergência”, de “estado de calamidade pública”, para maximizar suas oportunidades de ganho e de lucro.
Terceiro, as verdades que movem a atenção da emergência até as verdadeiras responsabilidades na produção de um imenso território insustentável sob diferentes perspectivas, incomodam. No entanto, os noticiários continuam implacáveis a cada dia, apenas culpando a chuva…
*Fonte: The Conversation, Revista Galileu, o Globo.
Foto: Gilvan Rocha/Agência Brasil – 03/05/2024
*Andre Lampis é professor titular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Victor Marchezini é sociólogo e professor do Programa de Pós-graduação em Desastres do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Este texto foi originalmente publicado no site The Conversation.