Calamidade no Rio Grande do Sul, uma triste realidade

As tempestades no Rio Grande do Sul têm deixado nesta semana um rastro de destruição, com ao menos 100 mortos 103 desaparecidos, mais de 16 mil pessoas em abrigos e mais de 80 mil desalojados até este domingo, 5. Além das vítimas, o resultado mais grave da tragédia, desastres naturais trazem uma onda de prejuízos. Nos dias e semanas seguintes, são contabilizados os efeitos da destruição de moradias, equipamentos públicos e da produção econômica nas regiões afetadas.

Em todo o ano passado, os desastres naturais causaram prejuízo de R$ 105,4 bilhões ao Brasil, segundo levantamento da Confederação Nacional dos Municípios. Os dados foram levantados por meio do que Estados e prefeituras relataram ao Sistema Integrado de Informações sobre Desastres S2iD, plataforma do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional.

Embora o momento seja de prestar assistência às vitimas dos temporais e enchentes, é necessário buscar as causas desse catastrófico desastre ambiental.

A legislação brasileira começou a pedir já nos anos 1930 que margens e várzeas de rios, suas áreas de inundação, não fossem desmatadas e habitadas, mas tais espaços são ocupados desde sempre, no campo e nas cidades.

Respeitar essa regra teria evitado o novo descalabro que assistimos no Rio Grande do Sul? Certamente não, mas teria reduzido consideravelmente a muito subestimada contagem de desabrigados, feridos e mortos.

O cenário apocalíptico atinge em maior ou menor grau sete em cada dez municípios gaúchos, a capital Porto Alegre e sua Região Metropolitana, onde o aguaceiro de rios como Jacuí, Sinos e Gravataí se acumula no Lago Guaíba até escorrer lentamente à Lagoa dos Patos, duas grandes barragens naturais de onde, finalmente, encontra o Atlântico.

Durante seu primeiro ano de mandato em 2019, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), realizou alterações significativas em torno de 480 normas do Código Ambiental do estado. Essas mudanças foram oficializadas no ano seguinte, em 2020, e coincidiram com uma fase de flexibilização da política ambiental brasileira, impulsionada pelo então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no governo Bolsonaro, segundo aponta reportagem do jornalista Jorge Abreu, da Folha de S. Paulo.

Os recentes eventos de enchentes no estado desencadearam críticas por parte de ambientalistas à gestão de Eduardo Leite. Eles apontam o governador como o principal articulador, ao lado da Assembleia Legislativa, de um processo que eles caracterizam como desmonte das leis de proteção ambiental estaduais.

Em resposta às críticas, o governo do Rio Grande do Sul afirmou que as alterações no código ambiental foram fruto de discussões que envolveram diversos setores da sociedade, incluindo a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). Segundo o governo, as mudanças visaram alinhar a legislação estadual com as normas federais, além de modernizá-la para atender às transformações sociais e garantir a proteção ambiental, a segurança jurídica e o desenvolvimento responsável.

Especialistas negam participação da sociedade nas mudanças

Entretanto, o diretor científico e técnico da Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural), Francisco Milanez, nega a participação efetiva da sociedade civil e das entidades ambientalistas na construção do novo código. Ele ressalta que as mudanças foram realizadas de forma unilateral, lideradas pelo governador Leite.

Milanez destaca também outras medidas tomadas pelo governo que suscitaram críticas, como a flexibilização da construção de barragens e reservatórios de água em áreas de proteção permanente. Segundo ele, essa medida pode ter sérias consequências, afetando o fluxo natural da água e contribuindo para o aumento das enchentes e chuvas concentradas.

Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, uma rede de mais de cem organizações socioambientais, amplia o escopo da crítica ao destacar o papel do Congresso Nacional no enfraquecimento das políticas ambientais. Ele menciona projetos de lei aprovados recentemente que flexibilizam regras de proteção ambiental, como a dispensa de licenciamento ambiental para diversas atividades.

Sistema para conter águas falhou em Porto Alegre

Capital gaúcha tem 68 quilômetros de diques, muro de contenção, comportas e bombas para proteger cidade, mas houve falta de manutenção por décadas que permitiu o alagamento, segundo especialista em hidráulica

Apesar de ter sido criado para suportar até seis metros de elevação, o sistema de contenção de águas do Rio Guaíba em Porto Alegre não aguentou o nível acima dos cinco metros na capital gaúcha. O motivo, de acordo com o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, Gean Paulo Michel, é falta de manutenção e negligência da prefeitura ao longo de décadas. O sistema começou a operar a partir dos anos 1960.

Questionados, a prefeitura de Porto Alegre e o Departamento Municipal de Água e Esgotos afirmaram que foram investidos R$ 592 milhões em obras relacionadas a prevenção de cheias ou que amenizam situações de alagamentos na cidade. Mas na listagem de investimentos enviada pela prefeitura, não há valores voltados especificamente para a manutenção do sistema de contenção de águas.

Aquecimento Global

Para Paulo Artaxo, pesquisador que integra o IPCC, painel das Nações Unidas que reúne cientistas que estudam o aquecimento global, é preciso se adaptar ao novo clima. “Se não, vamos ficar apagando incêndio aqui, socorrendo enchente em outro lado, deslizamento de terra em Paraty hoje, amanhã em São Sebastião (em referência a outras cidades onde houve tragédias ligadas a temporais)… Até quando vamos ficar correndo atrás do prejuízo?”, diz ele, professor da USP.

“Todo o Brasil vai ter algum problema relacionado à mudança do clima. A gente deve se preparar. Vão ser muitos desafios para a segurança hídrica e cada região terá sua especificidade. Como o impacto é regional, a adaptação vai ter de levar isso em conta”, diz o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rodrigo Paiva.

Sem alerta

Além de trazer prejuízos às áreas afetadas, com a necessidade de reconstrução de estruturas e de moradias, as perdas financeiras drenam verbas para a prevenção de novos desastres e salvar vidas. Entre as estratégias destacadas por especialistas, estão investir em tecnologia de previsão do tempo e alerta, obras de contenção de encosta e remoção de moradores de áreas de risco.

Pesquisa realizada pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) com 3.590 dos 5.568 municípios brasileiros (64,5%) mostrou que 60% deles não têm sistema de alerta móvel ou fixo para desastre e que outros 33,7% utilizam o meio de comunicação digital para alertas, como é o caso dos municípios do Rio Grande do Sul.

Ainda segundo a CNM, os desastres podem ser evitados ou minimizados com a melhoria da gestão urbana e com o monitoramento e emissão de alertas, além da preparação das comunidades para evacuação ou outras medidas em caso de eventos extremos.

Também não dá mais para tolerar a política que mata pessoas com negacionismo, incompetência e visão de curto prazo. Acentuado desde 2019, o desmonte da legislação ambiental brasileira, em particular do código florestal gaúcho exporá ainda mais pessoas às enchentes.

Até as eleições municipais de outubro, as águas que hoje cobrem grande parte do Rio Grande do Sul terão baixado, mas a tragédia não pode ser esquecida diante da oportunidade de começar a eleger novos governantes em todas as cidades do país, atentos ao fato de que um futuro menos dramático para todos será construído com melhores ações, desde já.

Fontes: ((O)) Eco, Estadão, G1, Folha SP, 247.

Foto: Jeff Botega/Agencia RBS via Reuters.