As mudanças climáticas têm sido descritas como a maior ameaça global à saúde do século XXI. As evidências científicas das alterações climáticas são incontestáveis, e a magnitude das consequências já não pode ser ignorada. Evidências mostram claramente que iremos assistir a um aumento da temperatura e do nível do mar, eventos climáticos extremos mais frequentes e intensos, como chuvas fortes, ondas de calor, ciclones, secas e inundações.
Algumas regiões são mais vulneráveis às mudanças climáticas, como o sul da Ásia e a região do Pacífico, o Oriente Médio, o Cinturão do Sahel, o sul da África e a América Central. Na Austrália, já testemunhamos uma seca e incêndios florestais sem precedentes, que os cientistas associaram às alterações climáticas.
- Os impactos médicos da emergência climática
Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalha em alguns dos ambientes mais vulneráveis ao clima do mundo, onde as pessoas – que são as menos responsáveis pelas emissões que geram a crise climática e, ainda assim, suportam o peso de seus efeitos – já não têm acesso a cuidados básicos de saúde.
Em muitos países onde MSF trabalha, as equipes médico-humanitárias já estão respondendo a situações relacionadas às mudanças no meio ambiente. Isso inclui o aumento de doenças infecciosas, como malária, dengue e cólera, como resultado de mudanças nos padrões de chuva e temperatura; aumento das doenças zoonóticas (transmitidas entre animais e pessoas) devido à pressão crescente sobre o meio ambiente e eventos climáticos extremos mais frequentes, como ciclones, furacões e desnutrição causada por secas.
- Seca e insegurança hídrica
A seca apresenta múltiplos riscos para a saúde, ameaçando o abastecimento de água potável, saneamento e produtividade agrícola e pecuária, além de aumentar o risco de incêndios florestais. Consequentemente, as secas aumentam a insegurança alimentar e a desnutrição, o que pode causar atraso de crescimento, rápida perda de peso e morte de crianças. Os modelos atuais preveem que a mudança climática agravará severamente a escassez de água em todo o mundo. Em 2021, a Organização das Nações Unidas (ONU) anunciou que Madagascar estava prestes a enfrentar a primeira crise climática de fome no mundo. Três anos consecutivos de seca afetaram gravemente as colheitas e o acesso aos alimentos nas regiões desérticas do sul de Madagascar. A seca também exacerbou a “estação de escassez” (período entre o plantio e a colheita) anual, resultando em uma crise alimentar e nutricional aguda. Em resposta, MSF lançou um programa médico-nutricional para examinar e tratar comunidades para desnutrição aguda.
- Eventos ambientais extremos relacionados ao clima
De acordo com o Lancet Countdown on Climate and Health 2020, as mudanças climáticas influenciaram em 76 inundações, secas, tempestades e picos de temperatura entre 2015 e 2020. Em 2019, MSF lançou uma grande operação de emergência em Moçambique após as inundações devastadoras causadas pelo ciclone Idai. Algumas semanas depois, com as pessoas ainda sofrendo com o desastre, um segundo ciclone atingiu o país. Foi a primeira vez na história que houve registro de dois ciclones atingindo Moçambique em uma única temporada. A escala dos danos causados por esses desastres consecutivos foi um alerta para se preparar para ciclones tropicais de alto impacto, inundações costeiras e chuvas intensas ligadas às mudanças climáticas, de acordo com um comunicado da Organização Meteorológica Mundial, uma agência da ONU.
- Doenças infecciosas afetadas pelo clima
Temperaturas mais altas, como as associadas às mudanças climáticas, aumentam a incidência de doenças transmitidas por água e alimentos, como hepatite, gastroenterite viral e cólera. A mudança climática também tem sido associada à disseminação de vetores de doenças infecciosas, incluindo mosquitos e carrapatos, levando a prováveis aumentos de malária, dengue e doença de Lyme. Honduras, considerado um ponto crucial da mudança climática, está enfrentando seu pior surto de dengue em 50 anos após uma prolongada estação chuvosa.
MSF tratou mais de 5 mil pacientes, principalmente crianças com menos de 15 anos de idade que viviam em áreas urbanas empobrecidas, durante a epidemia de dengue. A dengue grave afeta a maioria dos países latino-americanos e asiáticos, sendo uma das principais causas de hospitalização e morte nessas regiões. A incidência da doença cresceu dramaticamente nas últimas décadas, em parte devido ao aquecimento das temperaturas e à disseminação associada das espécies de mosquitos que transmitem e propagam a dengue. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de metade da população mundial está em risco, com uma estimativa de 100 a 400 milhões de infecções a cada ano.
As equipes do MSF observaram picos de casos de malária em vários países subsaarianos em comparação com as médias de longo prazo. As evidências sugerem que a incidência e prevalência da malária irão aumentar, particularmente na África, o que preocupa muito por serem casos de malária em regiões onde os mosquitos não estavam presentes, como as montanhas da Etiópia.
- Migração climática e deslocamento populacional
A mudança climática está influenciando cada vez mais a mobilidade humana à medida que mais lugares se tornam inabitáveis. Milhões de pessoas estão atualmente se mudando e as condições que criam esse deslocamento provavelmente serão agravadas pelas mudanças climáticas. Espera-se que a maior parte da migração relacionada ao clima ocorra dentro das fronteiras nacionais e em direção às áreas urbanas, onde as pessoas podem enfrentar o desafio de viver em periferias superlotadas e pouco higiênicas. Estima-se que dois bilhões e meio de pessoas sejam acrescentadas aos ambientes urbanos até 2050, com 90% desse aumento ocorrendo na Ásia e na África. As regiões que passam por fortes choques climáticos costumam abrigar comunidades densamente povoadas e empobrecidas. Esses locais de pontos críticos incluem grandes deltas de rios no Sul da Ásia; regiões semiáridas na África e no Oriente Médio; geleiras e bacias hidrográficas na Ásia Central; ilhas baixas e regiões costeiras vulneráveis ao aumento do nível do mar; e áreas cada vez mais afetadas por eventos climáticos extremos, incluindo América Central, Caribe e Pacífico. MSF tem operações de grande escala em vários desses locais de pontos críticos climáticos e responde continuamente ao deslocamento da população causado por tempestades, enchentes e secas, incluindo no Haiti, Bangladesh, Nigéria, Somália e Iêmen.
- Médicos Sem Fronteiras na COP26
Pela primeira vez, MSF e participou da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP). A COP26 é a 26ª conferência desde que a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática foi criada em 1994, e a COP mais importante desde Paris em 2015, quando os países se comprometeram a limitar o aquecimento global a bem abaixo de 2 graus (de preferência 1,5 graus). Esta conferência foi importante porque os países apresentaram seus planos climáticos para atingir esta meta coletiva.
O objetivo dos MSF em participar da COP26 foi observar, aprender e se engajar com outros atores da saúde e demais áreas participantes, com a mensagem concentrada nos impactos que a emergência climática já está tendo sobre as populações mais vulneráveis. As organizações humanitárias respondem às crises independentemente da causa, mas apenas seus esforços não irão compensar a inação dos líderes políticos. Somente uma ação política concreta pode implementar soluções para limitar o aquecimento global e evitar consequências humanas desastrosas.
Fonte: MSF