Os criminosos nem sempre atentam ao detalhe: um pouco de barro na sola do sapato ou uma fina camada de argila aderida à pele pode permitir aos especialistas em análise de solos confirmar se uma pessoa ou objeto fez parte da cena de um crime.
E nem é preciso muito material. Com as técnicas aprimoradas nos últimos anos, uma quantidade de solo equivalente a um grão de arroz pode ser suficiente para revelar a origem de uma amostra.
Os principais avanços nessa área – a ciência do solo forense ou análise de solos forenses – datam das duas últimas décadas. Surgiram em países como Austrália, Reino Unido e Estados Unidos, onde seu uso é mais difundido, e em geral foi motivado pela necessidade de a polícia ter acesso a ferramentas novas e mais precisas para analisar elementos encontrados no local do crime ou com um suspeito.
Mais recentemente, as estratégias começaram a ser adotadas por unidades das polícias científica e federal no Brasil em decorrência de colaborações com o engenheiro-agrônomo Vander de Freitas Melo, professor aposentado da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e os pesquisadores formados por ele.
Especialista na área de química e mineralogia de solos, Melo foi procurado em meados dos anos 2000 por Leila Barbar, perita do Instituto de Criminalística do Paraná. Em vários casos sob investigação à época, ela vinha encontrando solo aderido a tecidos e calçados e se interessou em saber se poderia existir um mapa com perfis dos solos da Região Metropolitana de Curitiba que permitisse identificar o local de origem das amostras encontradas em objetos possivelmente utilizados pelos suspeitos.
Melo se encantou com o assunto e iniciou um trabalho criterioso de coleta de amostras de solo nos bairros com índices de criminalidade mais elevados. Também se uniu a outro especialista na área e a um químico e, em colaboração com Barbar, desenvolveu uma metodologia de caracterização de solos da capital paranaense voltada para a prática forense.
Trabalho seminal
O solo é composto por três frações primárias, classificadas por tamanho decrescente dos grãos em areia, silte e argila. Nessa avaliação, o grupo verificou que a análise da última fração – a argila, que é altamente responsiva às análises em razão do seu tamanho diminuto e pode herdar características dos minerais presentes nas rochas responsáveis por sua formação – permitia agrupar com mais precisão as amostras coletadas em um mesmo local e separá-las das coletadas em outras áreas.
“Esse trabalho foi seminal para estimular o estudo de solos com finalidade forense no Brasil. Ele estabeleceu critérios técnicos bem definidos para a coleta e análise do material”, afirma o geólogo Fábio Salvador, que foi perito do Instituto de Criminalística de São Paulo e diretor tecnocientífico da Polícia Federal (PF), em Brasília, de 2019 a 2020.
Integrante da Iniciativa em Geologia Forense, grupo internacional que reúne pesquisadores e peritos interessados em incentivar e divulgar estudos de geologia para obtenção e análise de provas criminais, Salvador conheceu o trabalho de Melo em meados da década passada e começou a atuar em parceria com a equipe da UFPR. “Antes, essa análise era realizada de forma esporádica por iniciativa individual do perito e sem critérios difundidos e discutidos”, conta o geólogo, que atualmente trabalha no setor tecnocientífico da PF em Curitiba.
O primeiro caso real
Mesmo após o teste simulado bem-sucedido, levou tempo até que a metodologia fosse avaliada na prática. A oportunidade de testá-la em um caso real só surgiu anos mais tarde, quando peritos da Polícia Científica do Paraná pediram à equipe de Melo auxílio para analisar amostras de solo encontradas em um cofre de banco roubado em dezembro de 2016 de uma agência na cidade de Araucária, na Região Metropolitana de Curitiba. O cofre havia sido descartado na zona rural do município dias mais tarde, depois de aberto.
Foram coletadas amostras de solo encontradas na superfície do cofre, em um veículo suspeito de ter sido usado para transportá-lo e em uma propriedade na qual teria sido aberto. A comparação, porém, não permitiu uma conclusão clara.
“Esse caso serviu para mostrar que era preciso aprimorar ainda mais a estratégia de coleta de amostras, buscando uma padronização dos procedimentos adotados”, conta a agrônoma Samara Alves Testoni, que trabalhou na análise do caso durante seu doutorado, feito sob a orientação de Melo e com um período no Instituto James Hutton, na Escócia, onde trabalhou sob a supervisão da geógrafa Lorna Dawson, uma pesquisadora reconhecida internacionalmente na área de análises de solos forenses.
Meio grama de evidência
Na madrugada de 9 de maio, uma mulher desapareceu em Colombo. Seu corpo foi encontrado quase um mês mais tarde, a cerca de 50 quilômetros da cidade, jogado em um barranco da estrada que corta a Estrada da Graciosa e liga Curitiba ao litoral paranaense. Em 19 de maio, o ex-namorado da vítima, um policial militar, foi preso, suspeito de ter cometido o crime. Câmeras de segurança do prédio em que a mulher morava registraram sua saída na madrugada, acompanhada do ex-namorado. O acusado, no entanto, negava e dizia não ter estado na Estrada da Graciosa.
Chamada para auxiliar na busca de indícios, a equipe da UFPR procurou amostras de solo no interior do veículo do suspeito, onde costumam ficar aderidas. “O carro estava limpo nos pedais e carpetes”, lembra Testoni, que participou da coleta e hoje faz estágio de pós-doutorado na área de ciências forenses na Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Na parte externa, porém, havia uma quantidade pequena de solo em um dos para-lamas e em um dos espelhos retrovisores – cerca de 0,5 g no total. Análises mineralógicas preliminares revelaram que o material continha feldspato potássico, um mineral típico de solos formados de granito, rocha comum na Estrada da Graciosa.
Amostras de solo foram, então, coletadas em diferentes trechos da estrada e levadas para o laboratório da UFPR. O perfil químico e mineralógico do solo encontrado no veículo coincidia com um local próximo ao descarte do corpo, informaram os pesquisadores em um artigo publicado em 2019 na revista Science & Justice. O réu continua preso, aguardando o julgamento pelo tribunal do júri.
Implementação com cautela
“A identificação de impressões digitais e de amostras de DNA permite chegar à identidade de alguém que comete um crime, enquanto a entomologia forense, o exame de larvas de insetos encontrados nos cadáveres, é importante para estimar o tempo desde a morte. Já a análise do solo torna possível conectar o suspeito ou objetos usados por ele à cena do crime”, explica o engenheiro-agrônomo especialista em solos Rodrigo Studart Corrêa, perito da Polícia Civil do Distrito Federal.
Corrêa conheceu Melo em 2015 e fez um estágio de pós-doutoramento no laboratório da UFPR. Ao retornar para Brasília em 2017, começou a instituir na rotina da polícia a análise de solos forenses. “Estamos implementando com muita cautela porque, seja qual para o resultado, há sempre impacto na vida de alguém. Um resultado falso positivo prejudica o indiciado, já um falso negativo afeta a família da vítima”, conta o perito, que já ajudou a obter indícios para esclarecer alguns inquéritos, do mais simples a homicídios dolosos.
Em um deles, um homem foi morto e esquartejado depois de um desentendimento em uma festa ocorrida em 2020 em Planaltina, perto de Brasília. Seu corpo foi colocado em uma mala e enterrado longe da cidade. Além do suspeito, havia um possível cúmplice, em cuja casa foram encontradas uma pá e uma enxada sujas de terra. A análise do solo indicou que os vestígios da enxada não condiziam com o do local de descarte, mas os da pá, sim, o que levantou indícios contra o suposto cúmplice. “Nosso laudo ajudou a colocar a pá na cova”, diz Corrêa.
Uso esporádico antes
A análise de solos para resolver crimes não é uma prática recente, embora apenas nas últimas décadas tenha avançado e se sofisticado, conquistando espaço em alguns institutos de criminalística. Existem relatos de que os antigos romanos já adotavam uma prática precursora dessa ciência ao inspecionar os cascos dos cavalos de exércitos inimigos para saber de onde vinham.
Segundo os especialistas na área, o primeiro caso documentado do uso de uma nascente análise forense do solo para elucidar um delito teria ocorrido em abril de 1856 na Prússia. Um barril repleto de moedas de prata foi colocado em um trem e chegou a seu destino carregado de areia. Chamado para ajudar no caso, o naturalista e geólogo alemão Christian Ehrenberg (1795-1876) obteve amostras de solo de todas as estações em que a composição havia parado e, usando um microscópio, identificou em qual teria ocorrido a troca, permitindo chegar ao culpado.
Desde então, pouco mudou até o início dos anos 2000. “O uso da análise forense de solos foi esporádico, muito baseado na análise visual, e dependente do conhecimento acumulado pelo especialista”, relata Corrêa.
A transformação veio com o trabalho de pesquisadores acadêmicos como Lorna Dawson e o agrônomo australiano Robert Fitzpatrick, criador do Centro Australiano de Ciência Forense do Solo, que adaptaram técnicas utilizadas na agricultura para a área investigativa e ajudaram a solucionar crimes de repercussão internacional.
Em um deles, que se tornou conhecido como o caso do World’s End, em referência a um pub da capital da Escócia no qual duas jovens haviam estado na noite em que foram mortas, em 1977, Dawson ajudou a detalhar uma sequência de eventos ocorridos na hora dos assassinatos a partir de vestígios de solo coletados do pé de uma das vítimas e guardados por 37 anos.
Seu laudo, produzido em 2014, contribuiu para mais uma condenação do serial killer Angus Sinclair (1945-2020). “Se conseguirmos instituir a análise de solos como rotina no trabalho das polícias, talvez ela se torne tão difundida quanto o exame de DNA”, diz Corrêa.
Fonte: Revista Planeta.