Na Grécia Antiga, o vinho era considerado um presente dos deuses. A bebida teve um papel tão essencial na cultura grega que uma das 12 divindades olímpicas foi batizada em homenagem ao líquido: Dionísio, o deus do vinho e da colheita das uvas.
Com séculos de história desde o início, o desenvolvimento e a industrialização do processo produtivo do vinho – assim como outros setores agrícolas da sociedade – também viraram alvo de tendências sustentáveis, alinhada à preocupação global por produtos mais saudáveis, naturais e que gerem menos impacto negativo no meio ambiente.
A nutricionista e proprietária da Enoteca Saint VinSaint, Lis Cereja, foi pioneira do movimento de vinhos orgânicos, biodinâmicos e naturais no Brasil ainda em 2008. Cinco anos depois, em 2013, foi realizada a primeira edição da Feira Naturebas, que agora reúne mais de 100 produtores e importadores não só de vinhos naturais, mas também de cervejas selvagens, fermentados de frutas, chocolates, azeites, queijos e alimentos em geral.
“O movimento do vinho natural ganhou expressividade principalmente depois de 2010, quando começaram a surgir as grandes feiras do setor no mundo. Quando foi planejado o evento, a ideia era movimentar o mundo do vinho natural no Brasil. Até hoje, a Feira Naturebas é a única de vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos do Brasil e é a maior da América Latina”, disse Cereja.
Assim como em qualquer outro cultivo agrícola, os vinhos orgânicos são aqueles que não usam pesticidas, fungicidas ou outros agrotóxicos. No caso dos vinhos naturais, eles são feitos com uvas provenientes de uma agricultura saudável e depois vinificados sem insumos enológicos. Já os biodinâmicos também são orgânicos e a produção das uvas é baseada nos conceitos do filósofo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925).
Além de não usar defensivos agrícolas, essa prática considera a produção como um sistema que envolve toda a vida natural, incluindo outros elementos orgânicos, animais e o cosmos, como as fases da Lua. Na indústria, as marcas usam insumos enológicos que moldam o produto para que ele apresente as características desejadas, como a correção da acidez, a cor e o aroma.
No primeiro ano da pandemia de coronavírus, em 2020, o consumo de vinho aumentou entre os brasileiros – em 2019, foram 2 litros por pessoa; no ano seguinte, a média subiu para 2,6 litros, de acordo com dados da Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV). No mundo, a produção em 2020 chegou a 260 milhões de hectolitros.
O fotógrafo e vinhateiro da Cantina Mincarone, Caio Mincarone, que produz vinhos naturais, conta que viu a procura pelo produto aumentar durante o primeiro ano da pandemia de covid-19. “Muita gente passou a querer conhecer coisas diferentes, houve uma busca grande por produtos sustentáveis e as pessoas quiseram se alimentar melhor, ao mesmo tempo em que diminuíram os gastos em viagem e festas. As pessoas passaram a beber melhor dentro de casa”, disse.
Porém, com a redução das restrições impostas pela pandemia, o ano de 2022 vem demonstrando baixa demanda. “Estamos quase no padrão anterior à pandemia. As pessoas voltaram a gastar em restaurantes, festas e a beber socialmente, além da diminuição geral do dinheiro do consumidor”, afirmou.
Sempre em busca de agricultores de uvas orgânicos ou que usem o mínimo possível de produtos nas videiras, Mincarone relata que já existem efeitos de mudanças nos padrões de chuva e que, no Rio Grande do Sul, os vinhedos sofrem com a dispersão de agrotóxicos usados no cultivo da soja. “Produtores de quem a gente compra uvas estão perdendo a produção e eles veem os vinhedos morrerem”, disse.
Por outro lado, o pesquisador em Enologia da Embrapa Uva e Vinho, Giuliano Pereira, diz que as condições climáticas do Hemisfério Sul, com períodos muito chuvosos na época de colheita das uvas, fazem com que seja extremamente difícil se manter competitivo com uma produção orgânica. “O uso racional de defensivos agrícolas, aplicados na medida correta, sem excessos e exageros, não apresenta problemas para o meio ambiente, para a uva, para o vinho e muito menos para o consumidor. Análises são feitas nos produtos e moléculas que demonstrem resíduos não são encontradas”, afirmou.
Para Pereira, a produção orgânica limita o potencial de venda da empresa diante dos produtos que invadem o Brasil, que são baratos e com custo-benefício positivo. “A empresa vai ter dificuldades para se sustentar e para vender. Isso funciona para produtores que são muito pequenos. Alguns podem ter sucesso, mas não é sustentável do ponto de vista do negócio”, disse.
De acordo com o pesquisador, há novas tecnologias e formas de produção que podem tornar as uvas mais resistentes e, consequentemente, reduzir o uso de fungicidas e agrotóxicos. Um exemplo é o uso de variedades híbridas, que são menos suscetíveis a doenças, mas ainda precisam ser autorizadas pelo Ministério da Agricultura no Brasil. Outra técnica é a viticultura de precisão. Ao invés de colher todas as uvas de uma vez só, o produtor faria um estudo detalhado de composição, profundidade, água disponível e entenderia as diferenças de produção.
“Com essas informações, junto a clima e altitude, o produtor pode valorizar as subparcelas. Os 20% da área com uvas mais concentradas pode ser um produto mais caro, enquanto outra parte, de 30% a 40% com água em excesso, que não matura tão bem, podem ser usados para um vinho jovem, vinho de guarda. É um conceito muito usado fora do Brasil”, explicou. Além disso, os recursos naturais são usados de forma mais calculada, o que beneficia a sustentabilidade do processo como um todo.
Para Cereja, da Enoteca Saint VinSaint, o movimento dos vinhos naturais vai além da discussão sobre sustentabilidade. “O vinho é o de menos. Ele é apenas uma das coisas em um contexto muito maior”, afirmou. De acordo com ela, da mesma maneira como a agricultura orgânica nasceu como um movimento de resistência à agricultura química do início do século XX, o movimento do vinho natural também surgiu como um movimento moderno de resistência à produção industrial de vinhos. “Os pequenos produtores agrícolas são aqueles que fazem o trabalho real de manutenção das tradições, das sementes e da saúde do solo. Temos que incentivar, comprar e fortalecer toda essa cadeia de pequenos produtores”.
Fonte: Um só Planeta.