Como sítios arqueológicos na Amazônia podem ajudar na luta por terras indígenas

A Amazônia é considerada o lar de povos indígenas que, há milhares de anos, já trabalhavam a terra de maneiras com as quais estamos familiarizados hoje. Eles construíram valas, lagoas, poços e outras estruturas que mostram que a floresta tropical não era “intocada”, como muitas vezes se acreditava, erroneamente. Séculos mais tarde, o desenvolvimento dessas populações foi violentamente interrompido com a chegada das primeiras embarcações europeias às Américas.

A verdadeira extensão dos assentamentos amazônicos e da transformação da paisagem por essas populações indígenas, no entanto, permanece incerta, apesar dos esforços de pesquisadores.

Agora, uma pesquisa recentemente publicada na revista Science revela uma estimativa sem precedentes do número de sítios arqueológicos pré-colombianos do tipo “obras de terra” ainda escondidas na floresta amazônica, tendo como base tanto estruturas já conhecidas quanto novas que foram descobertas e relatadas no estudo.

Os pesquisadores descobriram mais de 20 construções de terra sob o dossel da floresta amazônica no total, o que inclui uma vila fortificada, sítios defensivos e cerimoniais, montanhas coroadas, monumentos megalíticos e sítios ribeirinhos em várzeas. Tudo isso graças a uma tecnologia avançada de sensoriamento remoto conhecida como LiDAR, que significa “Light Detection and Ranging” em inglês (Detecção e alcance de luz).

Capaz de coletar informações sobre a estrutura da floresta e sobre o terreno abaixo da floresta, o sensor aéreo tem revolucionado a forma como as informações são obtidas sobre a superfície da Terra, permitindo descobertas arqueológicas em áreas densamente florestadas.

Os autores do artigo estimam que pode haver mais de 10 mil obras de terra ainda ocultas na floresta, e ainda identificaram mais de 50 espécies de árvores domesticadas que indicam a provável ocorrência de sítios arqueológicos desse tipo, o que sugere práticas ativas de manejo florestal indígena por sociedades pré-colombianas.

“Nossas descobertas sugerem claramente que a Amazônia tinha populações humanas consideráveis, talvez totalizando de 8 a 10 milhões de pessoas. Esse número é superior às estimativas anteriores, que foram debatidas por décadas pelos antropólogos”, diz William Laurance, ecologista tropical da Universidade James Cook, da Austrália, em Cairns, e coautor do estudo.

24 novos sítios arqueológicos

O estudo envolveu uma equipe intercontinental de mais de 200 pesquisadores de 24 países, que identificaram 24 sítios arqueológicos pré-colombianos não relatados anteriormente nas regiões sul, sudoeste, central e norte da Amazônia, depois de escanear dados LiDAR de áreas que totalizam 5.300 quilômetros quadrados, o que equivale a menos de 0,1% da Amazônia.

Esses 24 sítios revelam uma variedade de estruturas que indicam que as pessoas estavam usando diferentes partes da Amazônia de diferentes maneiras.

Na região sul, seis obras de terra que poderiam ser parte de uma vila fortificada de uma antiga cidade-praça foram descobertas na Bacia do Alto Xingu, em Mato Grosso.

“Essas aldeias possuíam valas periféricas, estradas com meio-fio, calçadas elevadas, lagoas artificiais, diques, açudes para peixes e outras estruturas de terra”, o que revela a existência de “políticas regionais e organizadas entre pares e uma forma social intermediária entre aldeias autônomas dentro da bacia do Alto Xingu”, disse o geógrafo brasileiro Vinicius Peripato, doutorando em sensoriamento remoto no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e principal autor do estudo, à Mongabay.

No sudoeste da Amazônia, foram encontradas dez estruturas de terra que poderiam ser sítios defensivos e cerimoniais, conhecidos como “geoglifos”, diz o pesquisador, nos municípios de Senador Guiomard e Rio Branco, no Acre. Peripato explica que a presença de urnas funerárias nesses tipos de sítios e a ausência de solos e cerâmicas antropogênicas “são evidências de que o uso dessas estruturas era limitado a reuniões religiosas e comunitárias”.

Na região do Escudo das Guianas, foram descobertos seis sítios nos municípios de Laranjal do Jari, Ferreira Gomes e Oiapoque, no Amapá. As construções de terra encontradas nas montanhas coroadas, chamadas no estudo de “assentamentos permanentes”, eram usadas tanto para “funções cerimoniais quanto domésticas”, explica o pesquisador, enquanto as estruturas megalíticas serviam apenas como “sítios cerimoniais”.

Já na Amazônia Central, foram encontradas duas estruturas de terra nos municípios de Boa Vista do Ramos e Óbidos, no Amazonas e Pará, respectivamente. Acredita-se que estas, nessas regiões, serviam como sítios ribeirinhos em várzeas, “que eram usados para coletar alimentos aquáticos durante a subida e a descida do nível dos rios na Amazônia”, explica Peripato.

Laurance diz que o estudo e trabalhos relacionados sugerem que os grupos indígenas da Amazônia tinham meios sofisticados de agricultura rotativa/itinerante, irrigação, desenvolvimento de aldeias e fortificações defensivas para ajudar a repelir ataques externos.

“Isso está fazendo com que os pesquisadores reavaliem seu pensamento sobre as habilidades técnicas dos povos nativos da Amazônia, que eram mais avançadas do que muitos pensavam”, afirma o coautor.

A luta pelo reconhecimento de territórios indígenas

A pesquisa “demonstra que a Amazônia sempre foi o lar dos povos indígenas”, diz Toya Manchineri, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que defende os direitos dos povos indígenas à terra, à saúde, à educação, à cultura e à sustentabilidade, em entrevista por telefone à Mongabay.

Ele ressalta que os dados são muito importantes, especialmente em um momento em que os povos indígenas no Brasil estão “travando uma batalha sobre a questão do marco temporal”, uma tese polêmica que restringiria o reconhecimento legal dos territórios indígenas em todo o país.

O marco temporal defende a invalidação de todas as reivindicações de terras indígenas que não estavam fisicamente ocupadas por comunidades indígenas em 5 de outubro de 1988, dia em que a Constituição brasileira foi promulgada. Embora essa doutrina tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em setembro, o Congresso Nacional brasileiro aprovou um projeto de lei (PL 2903) com um objetivo semelhante, desafiando a decisão do tribunal. O PL foi parcialmente vetado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para depois ter o veto derrubado pelo Congresso em dezembro.

Clement diz que os pesquisadores apontam que as obras de terra e as florestas domesticadas fornecem evidências diretas da habitação indígena ao longo de séculos e até milênios, o que contribui “para ajudar os povos indígenas a demonstrarem que têm direito a esses territórios”.

Milhares de obras de terra ainda podem estar ocultas

Os autores do estudo afirmam que suas descobertas podem servir como base para a descoberta de evidências muito mais extensas de habitação indígena, pois estes estimam que entre 10.272 e 23.648 obras de terra ainda podem estar escondidas sob a Floresta Amazônica. A estimativa foi obtida combinando as 24 estruturas recém-detectadas com as mais de 900 obras de terra registradas anteriormente e modelagem estatística avançada.

O número sugere que as estruturas de terra previamente documentadas na Amazônia representam menos de 10% do total, com mais de 90% permanecendo não descobertas, de acordo com a pesquisa.

Os cientistas também mostraram a notável correlação de que “espécies [de árvores] domesticadas estão relacionadas à probabilidade de obras na área”, explicou Hans ter Steege, pesquisador do Naturalis Biodiversity Center e professor da Universidade de Utrecht, na Holanda, coautor do artigo, à Mongabay.

Essa conexão foi estabelecida comparando os prováveis locais de obras de terra com registros históricos de espécies de árvores domesticadas na Amazônia. Das quase 80 dessas espécies, 53, incluindo cacau (Theobroma cacao), cupuaçu (Theobroma grandiflorum), pupunha (Bactris gasipaes), castanha-do-pará (Bertholletia excelsa) e outras, muitas das quais ainda estão sendo usadas, coincidiram com prováveis locais de obras de terra, diz ter Steege.

A esse respeito, Clement observa que, ao contrário do Oriente Médio, “onde a sociedade e a agricultura euro-americanas se originaram”, a Amazônia era habitada por pessoas envolvidas em arboricultura, “a cultura das árvores, das florestas e dos jardins”. O pesquisador menciona que “não havia agricultura antes da conquista europeia. No entanto, os ecossistemas amazônicos, especialmente as florestas, alimentavam milhões de pessoas. O que a sociedade pode aprender com isso?”

Manchineri diz acreditar que esses resultados fortalecem a visão de que os povos indígenas têm muito a contribuir para o desenvolvimento do país. “É uma pena que os governantes não olhem dessa forma.”

Ele sugere que talvez o sistema de agricultura em larga escala atual possa olhar para o conhecimento indígena de uma perspectiva diferente, “e tentar se adaptar para trabalhar não depredando o meio ambiente”.

Fonte: Mongabay.

Foto: Mongabay/Reprodução.