Areia é um elemento indispensável na vida moderna, compondo o concreto das casas, o asfalto das estradas, o vidro das janelas, os chips de silício dos telefones celulares e agora os frascos da vacina Covid-19. Contudo, além de ser a origem de um ramo comercial destrutivo, por vezes ilegal, ela está cada vez mais escassa e ninguém sabe dizer quando acabará de vez.
Apesar de ser o material mais empregado do mundo, a areia também é um dos menos monitorados: ao contrário de outros produtos, as instâncias reguladoras só têm uma vaga noção de quanto dela se utiliza por ano. Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) de 2019 teve que se basear nos dados sobre o cimento, que é misturado com areia e cascalho para fazer concreto, para chegar a uma estimativa de 50 bilhões de toneladas.
A demanda global por areia pode aumentar em 45% nos próximos quarenta anos, enquanto o intenso consumo desse importante material de construção pode acabar com suas reservas naturais, segundo estudo liderado pela Leiden University.
Segundo Xiaoyang Zhong, principal autor do estudo, estima-se que a demanda por areia na construção civil passe de 3,2 bilhões de toneladas anuais (tendo o ano de 2020 como referência) para 4,6 bilhões de toneladas em 2060. Em grande parte, esse aumento será liderado por áreas localizadas na África e na Ásia.
Quatro anos atrás, um grupo internacional de cientistas, incluindo dois da Michigan State University, chamou a atenção para uma iminente crise global de areia. A superexploração da areia, ingrediente fundamental do concreto, asfalto e vidro, estava prejudicando o meio ambiente, colocando comunidades em risco e gerando conflitos sociais.
Agora, os cientistas liderados pela pesquisadora associada Aurora Torres trazem uma nova luz sobre as implicações de sustentabilidade da demanda mundial por areia. Na revista One Earth, publicada on-line, a equipe propõe diversas soluções para enfrentar esses desafios.
“Com este documento, esperamos o que precisamos fazer como sociedade se quiser promover um consumo sustentável dos recursos globais de areia”, disse Torres, que faz parte do Centro de Integração e Sustentabilidade de Sistemas (CSIS) da MSU e da Université Catholique de Louvain, na Bélgica. “Um problema drástico exige soluções drásticas – realmente fazer isso de maneira diferente para colocar os problemas de lado e criar caminhos para a sustentabilidade”.
Pesquisadores ressalvam que isso é mais areia do que se pode usar responsavelmente a cada ano – embora ela também possa ser fabricada através da trituração de rochas. Em algumas regiões, a carência já motivou matanças direcionadas e a destruição de habitats.
“A natureza da crise é que não entendemos suficientemente esse material”, observa a coautora do relatório Louise Gallagher, do Observatório Global da Areia, em Genebra. “Não entendemos bem os impactos nos locais de onde o retiramos. Às vezes, nem sabemos de onde vem, como é extraído dos rios. Simplesmente não sabemos”.
Danos para humanos e meio ambiente
O que está claro para os especialistas, contudo, é que extrair areia em quantidades sem precedentes envolve alto custo para os seres humanos e o planeta: a mineração destrói habitats, polui rios e erode praias, muitas das quais já vêm perdendo terreno por causa da elevação do nível do mar.
Quando os mineradores escavam camadas de areia, as margens dos rios se tornam menos estáveis. Poluição e acidez matam os peixes, reduzem a quantidade de água disponível para a população e as plantações. E o problema piora quando represas rio acima impedem os sedimentos de voltarem a encher o leito dos rios.
“Há tantos aspectos que não são levados em consideração”, comenta a pesquisadora independente Kiran Pereira, autora de um livro propondo soluções para a crise dessa matéria-prima. “Isso definitivamente não é refletido no custo da areia”.
O pior é que grande parte do impacto sequer é imediatamente visível, o que dificulta saber sua extensão, ressalva Stephen Edwards, que pesquisa sobre setores extrativistas na União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). “Certamente está chegando a um nível em que precisamos prestar mais atenção ao assunto”.
Um artigo publicado pela revista Nature, em 2019, relatava que a mineração de areia contribuiu para levar à beira da extinção os gaviais do rio Ganges, só restando 250 adultos dessa espécie de crocodilo em estado natural. Além disso, a atividade desestabilizou as margens do Mekong, no Sudeste Asiático, cujo eventual desmoronamento pode deixar desabrigados 500 mil indivíduos.
Um dos motivos por que os danos da mineração têm sido ignorados é que, embora componha todo tipo de objetos do dia a dia, a areia fica “oculta em plena vista”, aponta o coautor do estudo Chris Hackney, geógrafo da Universidade de Newcastle, Inglaterra. “Pergunte às pessoas qual é a matéria-prima mais importante do planeta, e a areia dificilmente será mencionada”.
Por que não explorar os desertos?
Falar de escassez de areia parece um contrassenso. Embora um terço da superfície da Terra seja classificada como deserto, em grande parte arenoso, países do Oriente Médio, como a Arábia Saudita, importam o produto de lugares como Canadá ou Austrália. O arranha-céu Burj Khalifa, de 830 metros de altura, foi construído nos Emirados Árabes Unidos usando areia do outro lado do mundo.
Isso se deve ao pouco valor que a areia do deserto tem para o setor de construções: quando o vento sopra nas dunas, ele torna esféricas as partículas de areia, que assim oferecem menos fricção necessária a um concreto forte do que os arestosos grãos nos leitos fluviais, praias e no fundo do mar.
“Quando cresci em Bangalore, eu lia constantemente relatos sobre rios sendo dizimados pela mineração de areia”, conta Pereira. Entre suas primeiras lembranças está levantar-se às 2 horas da madrugada para pegar água numa torneira pública muito disputada. “Ao mesmo tempo, lembro de ver centenas e centenas de caminhões cheios de areia subindo e descendo a estrada para suprir todos os canteiros de obras.”
A maior demanda é da China, que entre 2011 e 2014 produziu mais cimento do que os Estados Unidos em todo o século 20. Calcula-se que, até 2027, a segunda maior produtora do mundo, a Índia, superará a China como país mais populoso.
Com o mundo a caminho dos 10 bilhões de habitantes até meados do século e com a migração em massa para as cidades na Ásia e África, estima-se que a demanda de areia continue crescendo.
Não se trata apenas de concreto: em 2011, foram dragados 20 milhões de metros cúbicos de areia do solo marinho do litoral da Holanda para formar uma barreira de proteção contra a erosão e a mudança climática. Nos últimos 50 anos, Cingapura construiu ilhas artificiais, aumentando em um quarto sua área, com areia importada do Cambodja, Vietnã, Indonésia e Malásia. Nos Emirados Árabes Unidos, as Palm Islands artificiais de Dubai, visíveis do espaço, foram feitas com areia retirada do fundo do Golfo Pérsico.
Fonte de criminalidade
E há também o custo humano: com os preços da areia em ascensão, a polícia de países desde a África do Sul até o México têm registrado numerosas mortes pelas mãos dos mineradores. Mas em nenhum lugar a violência é tão grande como na Índia, onde se localizam as mais mortais “máfias da areia”.
Quadrilhas criminosas têm queimado jornalistas vivos, desmembrado ativistas e atropelado policiais com caminhões. Um relatório de 2020 do grupo ambientalista Asia Network on Dams, Rivers and People, sediado em Nova Délhi, contou 193 vítimas da mineração ilegal de areia na Índia em dois anos.
As principais causas foram más condições de trabalho, violência e acidentes. Não só os mineradores têm que mergulhar até o fundo dos rios centenas de vezes ao dia, sem vestes protetoras, como há registros de trabalho infantil da Índia a Uganda, e raras vezes o setor foi responsabilizado.
No fim de fevereiro, um tribunal especial de Nova Délhi condenou à prisão por suborno o chefe da gigante indiana da areia de praia V.V. Minerals e o ex-diretor do Ministério do Meio Ambiente.
O magnata da areia, que há décadas vinha escapando de acusações de mineração ilegal, foi apanhado pagando as taxas de universidade do filho do funcionário em troca de uma licença ambiental ilícita. Um veículo de imprensa local comparou o caso ao do notório mafioso americano Al Capone, finalmente condenado por infrações tributárias.
Reservas de areia no futuro
Zhong foi taxativo em afirmar que, caso nada seja feito desde já, não haverá areia suficiente para desenvolver as cidades. Apesar disso, o estudo observou que pelo menos metade desse consumo previsto para 2060 diminuiria se um conjunto de medidas fossem adotadas.
Por exemplo, ampliar o tempo de vida útil dos edifícios, reutilizar concretos ou elaborar projetos de construção com materiais alternativos, como a madeira. Ainda assim, a maior redução dessa demanda de areia viria do bom aproveitamento dos espaços, tal como compartilhar um escritório.
O estudo analisou 26 áreas no mundo, mas os dados não são detalhados o suficiente para dimensionar o cenário futuro com precisão. Apenas o uso da areia para vidro e concreto foi considerado, então, a necessidade por esse material pode ser ainda maior do que o estimado pela equipe.
Soluções políticas e tecnológicas
Com a previsão de que a demanda por agregados para construção dobrará nas próximas décadas, o desafio da sustentabilidade é assustador. Compreender como as redes de suprimento de areia funcionam é relevante não apenas para avaliar seus impactos totais, mas também para identificar pontos de alavancagem para a sustentabilidade.
Para resolver a crise da areia, os líderes mundiais precisam regulamentar melhor o setor e aplicar leis anticorrupção, assim como monitorar a produção global da matéria-prima. Seria ainda necessário reduzir a demanda, encontrando alternativas para o concreto e construindo de forma mais eficaz com materiais como madeira.
A detonação e esmagamento de rochas também produz areia “artificial” e cascalho de qualidade semelhante ou até superior, e é um importante produto de exportação, por exemplo, para a Noruega. De fato, a pedra britada já se tornou a principal fonte de agregados em países como os Estados Unidos, China ou Europa.
Os entulhos de prédios demolidos poderiam ser reutilizados como agregado para estradas, por exemplo. Pesquisadores investigam ainda maneiras de viabilizar a abundante areia desértica para a construção, aquecendo-a e triturando os grãos. O atual desafio é diminuir os custos do processamento.
“Nossa capacidade de construir não depende de nossa necessidade de areia”, afirma a pesquisadora Kiran Pereira. “Podemos desassociar as duas coisas, e mesmo assim construir e permitir prosperidade humana, sem destruir nosso ecossistema”.
Fonte: DW, Ecodebate, Canaltech.