De pé na cozinha do restaurante Dai Due, na cidade norte-americana de Austin, com o cheiro forte de carne de porco cozida chegando ao meu nariz, fico angustiada. Sou vegana por motivos ambientais, e a carne de porco foi a primeira que parei de comer, há mais de uma década. Mas aqui estava eu, prestes a experimentá-la.
Mesmo apreensiva, sei que essa não é uma carne de porco qualquer: é a de um javaporco, também conhecido como porcoli ou porco feral. Esse é um dos animais invasores mais destrutivos dos Estados Unidos. E como eles causam tanto estrago, considera-se que, para o meio ambiente, é melhor que estejam mortos do que vivos. Isso significa que a temporada de caça no Texas fica aberta o ano todo, com o pedido das autoridades para que os caçadores matem o maior número possível de javaporcos.
O chef e um dos proprietários do Dai Due, Jesse Griffiths, que prioriza os ingredientes locais e mais sustentáveis em seu restaurante, costuma incluir javaporcos no cardápio. Ele está entre os que veem o abate desses animais como uma necessidade ambiental e os descreve como uma fonte “inquestionável” de proteína. “Se eu tivesse de escolher uma única carne, a melhor para o consumo, nem pensaria: é a do javaporco.”
O tamanho do problema
Os javaporcos não são nativos dos Estados Unidos; eles são o resultado do cruzamento de porcos domésticos, originalmente trazidos pelos colonizadores europeus, com javalis selvagens. Como se reproduzem na mesma velocidade que os porcos domésticos, seu número cresceu exponencialmente ao longo dos anos, chegando a cerca de 6 milhões em todo o território dos EUA, dos quais metade no estado do Texas, no sul do país.
E, com a expansão da quantidade de terra usada para o cultivo, os javaporcos ganharam mais oportunidades para obter alimento e abrigo. Os grandes campos de cultivo são uma espécie de bufê gratuito com hospedagem para eles dormirem e se esconderem. Apesar de alguns terem sido deslocados para propiciar oportunidades de caça, a expansão da agricultura levou ao surgimento de populações novas e destrutivas.
Eles comem plantações, matam animais de criação e danificam propriedades, tanto no campo quanto nas cidades. De acordo com o biólogo de vida selvagem John M. Tomecek, da Universidade do Texas A&M, eles causam um prejuízo anual de mais de 500 milhões de dólares.
O dano ambiental é mais difícil de quantificar, mas certamente inclui sementes de árvores nativas e ovos de pássaros e tartarugas. Eles também danificam os solos ao procurar alimentos e poluem os cursos d’água com suas fezes. Em várias partes do país, eles são abatidos por ursos e por leões da montanha. No Texas, entretanto, não têm predadores.
Em todo o mundo
Essa é uma característica compartilhada por muitas espécies invasoras, como o peixe-leão, um nativo dos oceanos Pacífico Sul e Índico que está tomando conta do Caribe e do Mediterrâneo, no Atlântico, inclusive já sendo um problema no Brasil. Tem também a ampulária, um caracol oriundo da Ásia que causa problemas no Canadá e nos Estados Unidos. Quando uma espécie não nativa se instala num novo habitat, pode ser muito difícil controlá-la.
De acordo com a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), coordenada pela parceria de quatro agências das Nações Unidas (Pnuma, Unesco, FAO e Pnud), as espécies invasoras desempenharam um papel fundamental em 60% das extinções globais de plantas e animais. Os danos anuais causados por elas chegam a mais de 423 bilhões de dólares, em dados de 2019, um número que quadruplicou a cada década desde 1970.
A bióloga Morelia Camacho-Cervantes, diretora do laboratório de espécies invasoras da Universidade Autônoma do México, diz que a melhor maneira de impedir que plantas e animais não nativos assumam o controle é evitar que se tornem populações estabelecidas. “Uma vez que eles tenham chegado aonde não pertencem, é preciso erradicá-los logo”, explica. “E com erradicar eu quero dizer matar.”
Há várias maneiras de fazê-lo: primeiro, os animais podem ser capturados em grupo numa armadilha e mortos. No caso dos javaporcos, mais inteligentes, os especialistas dizem que é melhor erradicar o grupo inteiro para que uns não ensinem aos outros como evitar os seres humanos.
No Texas, as pessoas podem pagar para caçar os javaporcos de helicóptero. Essa é a maneira mais fácil de matar uma manada inteira de uma só vez e até mesmo o método sugerido pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA).
Em muitos casos – como a Lycorma delicatula, conhecida como mosca-lanterna-pintada, no nordeste dos Estados Unidos ou cabras e ratos nas ilhas do México – as autoridades incentivam ativamente as pessoas a matarem as espécies invasoras.
Para a panela
Para alguns, o fato de algumas espécies invasoras servirem como alimento faz com que o chamado para matá-las seja mais fácil de ser aceito. No Caribe mexicano, por exemplo, a possibilidade de virar comida incentivou a população a se empenhar pela eliminação do peixe-leão.
“Os habitantes locais começaram a pescar com o objetivo de consumi-lo”, conta Camacho-Cervantes. “Eles se tornaram muito criativos com as receitas e passaram a vender muito. E, com isso, a pescar muito. E agora as populações lá são muito pequenas.”
O número de javaporcos no Texas ainda não está sob controle e, dada a elevada e rápida reprodução, Griffiths não acredita que isso vá acontecer. “Teríamos que matar algo em torno de 70% todos os anos só para manter a população como está”, diz ele, enquanto esquarteja um javaporco.
Mesmo assim, ele lembra de uma outra vantagem em comer os javaporcos que vagam livremente no Texas. “Cada quilo de javaporco que conseguimos servir é também um quilo a menos que está saindo de um sistema industrial de produção de carne.”
Penso nisso quando dou minha primeira mordida num pedaço de carne depois de tantos anos, e isso torna o meu consumo de um animal mais fácil. Com sinceridade: o sabor é inesperadamente bom, delicioso. Mas, mesmo assim, vou ficar com os vegetais.
Fonte: DW.
Foto: Larry Ditto/Avalon/IMAGO.
Foto: USDA APHIS. 1