Entenda por que os oceanos ainda são pouco conhecidos e tão cobiçados

Eles cobrem mais de 70% da superfície do planeta, geram a metade do oxigênio que respiramos e absorvem mais CO2 do que a atmosfera da Terra, mas nós sabemos mais sobre a superfície da Lua do que sobre as profundezas dos mares e oceanos. Último espaço inexplorado na Terra, eles atraem um interesse crescente e levantam questões geopolíticas, econômicas e ambientais.

O fundo do mar se estende pela esteira oceânica profunda, um verdadeiro subsolo sob o oceano. A 200 metros abaixo do nível do mar, quase não há luz. A partir de 1.000 metros, trata-se de um mundo de escuridão absoluta e um frio entre zero e quatro graus Celsius. A pressão é cem a mil vezes maior do que na superfície.

Há uma variedade de relevos: vastas planícies, montanhas, vulcões, cânions e trincheiras vertiginosas a 11 mil metros de profundidade para a Fossa Mariana, por exemplo e ocasionais infiltrações frias ou “chaminés” que cospem lavas extremamente quentes de sulfuretos, além de alguns tipos de lagos de salmoura onde a concentração de sal é muito alta.

“São tantas limitações que toda vez que o homem se aventura nesses espaços é uma verdadeira proeza tecnológica e humana”, escrevem os pesquisadores do Ifremer, um dos mais respeitados institutos de tecnologia marinha do mundo, situado na França.

Mas, apesar destas condições extremas, a vida, embora muito rara, pôde se desenvolver ali, como explicou Éric Lesavre, vice-presidente da Advention, que acaba de publicar um estudo sobre o mar profundo para a Fondation de la Mer (“Fundação do Mar”, em português).

Contudo,o aquecimento global está levando as temperaturas dos oceanos a níveis recorde, criando tempestades mais fortes e frequentes. Os níveis dos mares estão subindo. Países de ilhas baixas se veem ameaçados pela inundação, assim como qualquer grande cidade costeira do mundo.

Ao absorver o CO2 produzido em excesso pela atividade humana, os oceanos também estão mais ácidos, o que ameaça as cadeias alimentares aquáticas e a capacidade futura de retirar carbono da atmosfera.

Além disso, microplásticos frutos da poluição matam estimados 100 mil animais marinhos e 1 milhão de pássaros aquáticos a cada ano.

Interesses Farmacêuticos e Industriais

Perto das “chaminés” marinhas que expelem lavas, “fomos capazes de identificar uma série de formas de vida que são muito diferentes do que aquela que encontramos na Terra. Esta não é uma vida baseada na fotossíntese, mas na quimiossíntese, por exemplo. São seres muito diferentes e variados, e provavelmente só conhecemos menos de 1% deles”, continua Éric Lesavre.

Para Sabine Roux de Bézieux, presidente da Fondation de la Mer, os abismos, seus mistérios e maravilhas são “a grande fronteira do desconhecido no século 21”. Por enquanto, é como o “Faroeste selvagem”, diz ela. “Ao mesmo tempo, é uma área desconhecida que faz as pessoas sonharem, que desperta todo tipo de fantasias, um Eldorado incrivelmente rico. E é também uma zona sem leis, na qual o Direito internacional ocupará gradualmente seu lugar”, enquanto o progresso tecnológico escancara as portas para este mundo subaquático.

As apostas são imensas. “Existem potenciais extremamente importantes em termos de saúde”, diz Vincent Bouvier, ex-secretário geral do Mar, uma organização dependente do governo francês. Os cientistas esperam encontrar os medicamentos do futuro: antibióticos, anticancerígenos, analgésicos etc. Além disso, “90% das patentes depositadas hoje sobre recursos genéticos marinhos provêm de fontes hidrotermais”, observa o relatório da Fondation de la Mer, e “52% são detidas pela empresa alemã Basf”.

“Estas águas profundas também são estratégicas de um ponto de vista militar. Por exemplo, para a proteção dos cabos submarinos”, continua Vincent Bouvier. A grande maioria de nossas trocas não passa por satélites, mas por estes cabos. Trata-se de um imperativo que exigirá a adaptação e evolução das marinhas nacionais, diz.

E talvez o aspecto mais cobiçado das profundezas do mar seja sua riqueza em metais e terras raras. Estes minerais “estratégicos” são essenciais para a transição ecológica e digital que o planeta se comprometeu. Eles são usados na fabricação de baterias para carros elétricos, turbinas eólicas, drones e painéis solares”, diz o estudo. A demanda está explodindo e a Europa, em particular, está buscando conquistar a independência da China, que abastece quase todas as terras raras que consome.

Ambiente Frágil e Complexo

No último Congresso Mundial de Conservação, mais de 60% dos estados e agências nacionais votaram a favor de uma moratória [fim] sobre a mineração dos fundos marinhos. A França se absteve. Agora, as opiniões e ações estão se tornando mais urgentes, observa a Fondation de la Mer.

Os cientistas acreditam que a exploração destes recursos minerais afetaria irreversivelmente este ambiente frágil e complexo que levou tanto tempo para se desenvolver. A poluição gerada pelo ruído e pelas nuvens de sedimentos teria um impacto na vida em águas profundas, e talvez mesmo nas espécies em águas mais rasas que conhecemos e das quais nos alimentamos. Outra consequência possível é a liberação de CO2 armazenado no fundo do oceano.

Enquanto em suas respectivas zonas econômicas exclusivas (ZEEs), os Estados são livres para organizar sua exploração de recursos marinhos, no alto mar, ou seja, a mais de 200 milhas náuticas da costa, em águas internacionais, cabe à Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos decidir. O fundo do mar foi declarado “patrimônio comum da humanidade” pela ONU, numa tentativa de protegê-lo da ganância dos países e empresas privadas. E para Sabine Roux de Bézieux, presidente da Fondation de la Mer, é importante conhecer e entender antes de explorar.

“A urgência é proteger essas áreas antes que elas sejam danificadas. Hoje conhecemos o estado dos recifes de corais e dos manguezais, e não podemos deixar que o mesmo aconteça com o mar profundo”, disse ela. “Encorajamos a França e a Europa a trabalharem para propor uma moratória sobre a exploração do fundo marinho, pois não sabemos como extrair a terra e os metais raros que lá se encontram sem causar danos irreversíveis”.

“A corrida pelo fundo do mar já começou”, diz ela. Cerca de 30 países já têm programas de exploração sob o controle da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos e os primeiros pedidos de exploração já foram apresentados. A corrida agora é contra o relógio, para criar uma legislação robusta que consiga colocar um freio na ganância de exploradores de diversos tipos e origens.

Fonte: Folha SP.