Estudos mostram que o aquecimento global pode estar subestimado

A taxa do aquecimento médio superficial global nestes anos 2020 já é cerca de 50% maior do que a taxa de aquecimento que serviu de base às projeções do IPCC em 2018 e está em vias de se tornar quase o dobro daquela taxa de base dos anos 1970-2015

Os seres humanos estão provocando alterações acima dos limites da capacidade de suporte natural do planeta e as ações corretivas têm sido insuficientes para reverter o quadro, apontado pela ciência como catastrófico para a humanidade.

A aceleração do aquecimento acima do esperado

“O sistema Terra está atualmente em um estado de rápido aquecimento, sem precedentes mesmo nos registros geológicos”. A rapidez desse aquecimento não é apenas sem precedentes, mas está evoluindo a um ritmo não considerado nas projeções de aquecimento do IPCC.

O ano de 2040 estaria no centro dessa projeção como a data mais provável em que a temperatura média do planeta atingiria estrutural e irreversivelmente um aquecimento de 1,5 ºC em relação ao período pré-industrial. Como se sabe, já em 2018 essa projeção foi considerada conservadora por vários cientistas.

Ocorre que essa taxa de aquecimento de 0,18 ºC por década constatada no período 1970-2015 pertence definitivamente ao passado. O aquecimento médio superficial planetário entrou agora numa nova fase de aceleração, advertida já em 2018 por Yangyang Xu, Veerabhadran Ramanathan e David Victor.

Tal aceleração tem sido confirmada pelos termômetros. Bastem aqui três ou quatro exemplos. Em junho de 2021, a Organização Meteorológica Mundial afirmou ser difícil registrar todos os recordes de temperatura, tal sua quantidade. Em Lytton, na província de Colúmbia Britânica, no Canadá, a temperatura chegou em junho daquele ano a 49,6 ºC, mais do dobro da temperatura média da cidade no mês (24 ºC). Na mesma província canadense, romperam-se no dia 27 de junho de 2021 sessenta recordes de temperatura e no dia 28, mais 59, obrigando o governo a fechar escolas e a abrir refúgios com ar-condicionado.

A Sicília bateu por quase 1 ºC o recorde europeu de 48 ºC (Atenas, 1977) ao registrar 48,8 ºC em Siracusa em agosto de 2021.[9] As temperaturas no Kuwait estão tornando o país inabitável para os humanos e para outros animais. Em 2021, as temperaturas nesse país ultrapassaram pela primeira vez a marca de 50 ºC já em junho, ou seja, semanas antes do período de maior calor.

Há certeza de que esse aquecimento se deve primordialmente ao aumento das concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa (GEE), sobretudo o dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O). As concentrações atmosféricas de CO2, o mais importante desses gases, têm aumentado, com efeito, a taxas cada vez mais rápidas. Entre 1960 e 1969, o aumento do CO2 atmosférico vinha evoluindo à taxa média anual de 0,85 partes por milhão (ppm). Nos últimos onze anos, essa taxa quase triplicou, pois suas concentrações atmosféricas têm aumentado anualmente em mais de 2 ppm. Hoje, tais concentrações são mais do que 50% maiores do que no início da Revolução Industrial.

Também as concentrações atmosféricas de metano quase triplicaram nos últimos duzentos anos, aumentando de cerca de 720 partes por bilhão (ppb) em média no período pré-industrial para 1.924,99 ppb em dezembro de 2022, com forte disparada sobretudo desde 2007. No quinquênio 2007-2011, elas aumentaram em média 5,82 ppb por ano. Mas no quinquênio 2018-2022, elas aumentaram 13,066 ppb em média por ano.

Já em 2016, Marielle Saunois e colegas alertavam que “as concentrações atmosféricas de metano estão crescendo mais rapidamente do que em qualquer outro período nas duas últimas décadas e estão se aproximado desde 2014 dos cenários de maiores emissões de GEE”.

As emissões oriundas da mudança de uso de solo (principalmente desmatamento) não contabilizam no caso da Amazônia, por exemplo, as emissões provenientes da degradação florestal (fragmentação, desmatamento seletivo, incêndios, efeitos de borda, etc).

Numa entrevista concedida ao jornal El País em outubro de 2021, o cientista brasileiro Carlos Nobre, um dos maiores especialistas no assunto, reitera essa percepção de que as emissões dos países amazônicos reportadas à ONU são subestimadas justamente por não incluírem as emissões derivadas da degradação florestal”.

Se contabilizadas, as emissões totais de GEE do Brasil, ao menos as originadas da Amazônia, seriam, portanto, cerca do dobro das emissões relatadas oficialmente.

Além disso, as florestas degradadas têm absorvido menos CO2 do que anteriormente. Elas se tornaram por vezes neutras ou mesmo fontes de CO2, dada sua menor produtividade primária líquida (NPP) e sua maior mortalidade.[20]

E não é apenas o caso da Amazônia. A Malásia, por exemplo, emitiu 422 milhões de toneladas (Mt) de GEE em 2016, o que a coloca entre os 25 países maiores emissores de GEE do mundo. Contudo, o país declarou à ONU que suas emissões neste ano foram de apenas 81 Mt, argumentando que suas florestas haviam absorvido grandes quantidades de CO2.[21] Também os Estados Unidos subtraem quase 800 milhões de toneladas de seus inventários, algo próximo a 12% de suas emissões brutas, a partir de modelos e cálculos da EPA (State Inventory Tool ou SIT), desatualizados e/ou arbitrariamente generalizados para o país como um todo.[22]

As mensurações subestimadas de metano

Essa discrepância entre emissões reportadas e emissões reais seria ainda maior se se incluíssem (ou não se subestimassem) as emissões de GEE, sobretudo metano, originadas, no caso brasileiro, das 158 represas hidrelétricas atualmente em operação ou em construção na bacia amazônica (e há propostas e projetos para mais 351 dessas represas), emissões muito significativas como tem apresentado Philip Fearnside em uma série de trabalhos.[23] O autor mostra que as emissões de carbono das represas hidrelétricas brasileiras acabam sendo superiores às das usinas termelétricas, para uma geração equivalente de eletricidade, sendo esse montante muito superior aos números oficialmente admitidos pela Eletrobrás:[24]

“Os reservatórios hidrelétricos do Brasil em 2000 totalizavam 33 mil km², uma área maior que a da Bélgica [30.526 km2]. […] Infelizmente, a expectativa é que essas represas tenham emissões cumulativas maiores que as da geração de eletricidade por combustíveis fósseis por períodos que podem se estender por várias décadas, tornando-as indefensáveis com base na mitigação do aquecimento global”.

Mais recentemente, também Rafael de Almeida e colegas advertem que:[27]“Cerca de 10% das usinas hidrelétricas do mundo emitem tantos GEE por unidade de energia quanto as usinas convencionais de energia fóssil. Algumas barragens existentes na planície amazônica demonstraram ser até dez vezes mais intensivas em carbono do que as usinas termelétricas movidas a carvão”.

No caso dos Estados Unidos, estudos publicados entre 2020 e 2022 mostram que os escapes de metano em plataformas de extração de petróleo e gás em águas superficiais no Golfo do México têm sido largamente subestimados

Os incêndios florestais

Outra fonte de emissões de GEE nem sempre reportada corretamente pelos países são as causadas por incêndios florestais. Ocorre que esses incêndios estão aumentando rapidamente em extensão espacial, intensidade, duração e frequência. Segundo o Copernicus, apenas em 2021, eles foram responsáveis por emissões de 1,76 bilhão de toneladas de GEE, mais do dobro das emissões da Alemanha naquele ano. Um trabalho publicado em outubro de 2022 estima que os incêndios florestais na Califórnia apenas em 2020 emitiram 127 milhões de toneladas de CO2-equivalente ou sete vezes mais que a média anual do período 2003-2019.

Na Rússia, estima-se que 50% das emissões de carbono provenientes de incêndios nas imensas florestas desse país não foram reportadas nos inventários nacionais no período 2004-2020.[31] Em 2017, os incêndios florestais que se estenderam por mais de três meses em Elephant Hill no estado de British Columbia, no Canadá, lançaram na atmosfera cerca de 38 milhões de toneladas de CO2, algo equivalente às emissões médias de 8 milhões de automóveis durante um ano.

O abismo entre emissões reportadas e emissões reais

A envergadura global dessas discrepâncias entre as emissões reportadas pelas Partes da UNFCCC e as emissões antropogênicas reais foi recentemente revelada por um estudo realizado pelo jornal The Washington Post, segundo o qual: “Em todo o mundo, muitos países subnotificam suas emissões de GEE em seus relatórios para as Nações Unidas.

Eliminando as inconsistências na aferição das emissões de GEE

Um preceito básico da ciência é o de que só se pode conhecer, prever e, portanto, gerir, o que se pode medir. Os países não estão notificando corretamente à ONU as mensurações de suas emissões líquidas antropogênicas. Não é de admirar, assim sendo, que o aquecimento global esteja ocorrendo agora a uma velocidade superior à prevista pelas projeções.

Será preciso rever os dados sobre inventários nacionais fornecidos à ONU, aferindo sua metodologia. Deverá ser adequada, confiável e auditável, o que inclui a participação da sociedade civil dos diferentes países envolvidos. É preciso criar e colocar em prática mecanismos de publicidade, participação e controle social sobre o processo de obtenção dos dados e formulação dos inventários nacionais.

Fonte: Le Monde Diplomatique.

Foto: Unplash.