Na vastidão da Amazônia, a fazenda Santa Rita está longe de ficar entre as grandes propriedades. Tem apenas 294 hectares e seus pastos alimentam algumas centenas de cabeças de gado.
O que a torna peculiar é sua localização ilegal: fica no coração da Floresta Nacional (Flona) de Itacaiúnas, no município de Marabá, sudeste do Pará. A floresta, criada em 1998 para ser um santuário de espécies raras, como a arara-azul e a onça-parda, não pode ser ocupada por fazendas, mas, nestas duas primeiras décadas do século XXI, vem sendo devastada por garimpeiros e ladrões de terras públicas, que buscam madeiras nobres e novas áreas para a criação de gado.
Atualmente, existem 48 grileiros dentro da Flona. Juntos, eles ocupam uma área de 20 848 hectares e são donos de pelo menos 20 mil cabeças de gado. Entre os grileiros, está Luzimarque Veloso, de 50 anos, que se apresenta como proprietário da fazenda Santa Rita.
Naquelas terras públicas, ele cria, recria e engorda gado em larga escala para abastecer os grandes frigoríficos do país, entre eles a JBS, a maior processadora de proteína animal do mundo. Como é proibido criar gado naquela terra, e importadores e consumidores tendem a rejeitar comprar carne de origem ilegal, Veloso abastece a JBS por meio de uma operação indireta – como a que aconteceu em 28 de agosto de 2019, no auge do verão amazônico.
Naquela manhã, um caminhão fez umas viagem curta, transportando 54 novilhos, com idades entre 25 e 36 meses, da fazenda Santa Rita para a fazenda Santa Cecília II, que fica a apenas 14 km de distância, mas numa área já legalizada, fora dos limites da Flona de Itacaiúnas. Nos documentos que registraram o transporte, consta que o objetivo era engordar os animais na Santa Cecília II. Embora seja normal levar os animais de fazendas de cria para fazendas de engorda, neste caso era só um disfarce.
Menos de uma semana depois, dezoito novilhos fizeram nova viagem, desta vez até uma unidade da JBS, em Tucumã, a 100 km de distância. Nos dias 11 de setembro e 10 de outubro, os outros 36 garrotes foram levados pelo mesmo percurso. Abatidos na JBS, os 54 animais terminaram na forma de peças de filé-mignon, picanha e alcatra nos supermercados.
Para efeitos legais, os animais chegaram aos frigoríficos procedentes da Santa Cecília II, uma fazenda dentro da lei. Na verdade, fizeram ali apenas uma escala de alguns dias porque, de fato, foram criados na fazenda de um grileiro no meio de uma floresta nacional. É a operação “lavagem da boiada”, cada vez mais comum. Entre 2018 e 2021, pelo menos 91 238 animais saíram de terras públicas invadidas no Pará, conforme levantamento inédito feito pela piauí em parceria com três entidades: o Center para Climate Crime Analysis (CCCA), uma ONG que estimula a aplicação da lei contra ações ilegais que agravam as mudanças climáticas e violam direitos humanos, o Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), um consórcio internacional de jornalismo que investiga corrupção e crime organizado, e a Fiquem Sabendo, agência de dados especializada na Lei de Acesso à Informação.
A lavagem da boiada não serve apenas para abastecer o mercado de carne. Em novembro do ano passado, o jornal The New York Times publicou uma reportagem mostrando que o esquema da triangulação é usado por curtumes operados pelos mesmos frigoríficos – JBS e Marfrig, além do Minerva.
O jornal detalhou a operação em terras griladas na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Rondônia, e mostrou que parte do couro dos animais criados em fazendas ilegais fora importada para os Estados Unidos pelas grandes fabricantes de automóveis. General Motors, Ford e Volkswagen usam o couro para forrar os bancos de seus carros de luxo.
No dia 10 de junho, na Nona Cúpula das Américas, em Los Angeles, o presidente Jair Bolsonaro fez um discurso de dez minutos. Estava pressionado pelos números crescentes de desmatamento e queimadas na Amazônia e também pelo sumiço do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips. Bolsonaro disse que o governo estava fazendo o possível para encontrar os desaparecidos e aproveitou a oportunidade para apresentar o Brasil como um exemplo mundial de preservação ambiental. Logo no início do discurso, afirmou que a agropecuária brasileira não precisa avançar sobre a Floresta Amazônica para crescer. “Não necessitamos da região amazônica para expandir nosso agronegócio”, disse.
A declaração não veio acompanhada de números, mas é flagrantemente contrária à realidade. A principal causa de desmatamento na Amazônia é, justamente, o agronegócio. Longe da fiscalização do poder público e amparada no poderoso lobby do setor agropecuário, a criação de gado em áreas griladas e desmatadas ilegalmente vem se alastrando pela floresta. De tal modo que, hoje, a pecuária é a principal causa do desmatamento em larga escala na região.
De acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), 90% das áreas desmatadas na região são ocupadas por pastagens. Isso acontece porque, em parte, o custo de criação de gado é baixo, pois, ao contrário de outras culturas, não requer correção do solo nem adubação. Além disso, diante da falta de fiscalização e controle, é enorme a facilidade de se ocupar uma terra ilicitamente.
O processo de grilagem e destruição ambiental na Amazônia começa diante do computador, quando o grileiro registra uma área dentro de unidades de conservação ou de terras indígenas como se fosse sua propriedade. O registro é feito no chamado Cadastro Ambiental Rural (CAR), um sistema online e autodeclaratório. Regulamentado em lei desde 2012, o CAR é um instrumento importante que se destina a regularizar as áreas de proteção ambiental dentro de cada propriedade rural. Só que, desvirtuado, o CAR vem sendo usado por grileiros para se apossarem ilegalmente de terras públicas.
Feito o registro, o passo seguinte é retirar da área grilada toda a madeira com valor de mercado. Depois, vem o maquinário para “limpar” a área. Quem me explicou em detalhes esse processo foi um dono de tratores em uma oficina mecânica de Novo Progresso, a 500 metros do escritório do Ibama, em outubro passado Segundo explicou, dois tratores andam lado a lado arrastando uma corrente muito grossa que arranca tudo o que encontra pela frente. São necessárias seis horas, em média, para desmatar um alqueire (equivalente a cerca de 2 hectares e meio, ou quase três quarteirões), ao custo de 450 reais a hora. Sobram tocos e pedaços de raízes. “Fica tudo quebrado”, diz o tratorista.
Para ganhar tempo, logo atrás dos tratores vêm pelo menos dez peões jogando sementes de capim no solo. Mas o gado não é colocado ali de imediato, porque os tocos acabam por maltratar os animais. O ideal é que os tratores entrem em ação em outubro ou novembro, para que as chuvas do inverno amazônico, entre dezembro e maio, façam crescer o capim. “Aí, em agosto, com a seca, você põe fogo em tudo. Em pouco tempo o capim nasce de novo e fica tudo limpinho”, concluiu o tratorista.
Nesse processo, derruba-se a floresta para criar gado e não se ganha nada em produtividade. Aliás, a produtividade da pecuária amazônica é a mais baixa do país, de acordo com o Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás.
No Pará, criam-se em média dez bois em um espaço de 10 hectares. No Paraná, com a mesma quantidade de terra, cria-se o dobro de cabeças de gado. “A baixa produtividade gera menos tributação e, portanto, reduz a capacidade do estado de modernizar o setor.
No fim da gestão de Michel Temer, já em 2018, o Ministério do Meio Ambiente começou a desenhar um novo sistema para a fiscalização das cadeias produtivas da carne e da soja na Amazônia. O novo sistema custaria 18 milhões de euros, cerca de 100 milhões de reais em valores de hoje, e seria bancado pelo governo da Alemanha. Mas o projeto foi engavetado já no primeiro ano do governo Bolsonaro.
Na primeira metade dos anos 2000, a Amazônia brasileira ardia em chamas, com recordes históricos de desmatamento. Em 2004, a floresta perdeu nada menos que 27,7 mil km2. A então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, intensificou as ações do Ibama contra a invasão de terras públicas e, em dezembro de 2007, estabeleceu, pela primeira vez, o embargo de áreas desmatadas ilegalmente, proibindo a exploração econômica desses polígonos e corresponsabilizando aqueles que adquirissem produtos dessas áreas, especialmente gado e soja.
No ano seguinte, o Conselho Monetário Nacional (CMN) proibiu os bancos públicos de financiar donos de áreas griladas e desmatadas ilegalmente. Era o Brasil entrando numa era de ouro da preservação ambiental.
O cerco à pecuária ampliou-se em 2009, quando o Greenpeace, uma das maiores ONGs ambientais do mundo, divulgou o relatório A Farra do Boi na Amazônia, expondo as ilegalidades na cadeia de fornecimento do gado a frigoríficos do Pará e de Mato Grosso.
Acuadas, as três maiores empresas do setor (JBS, Marfrig e Minerva) assinaram um acordo com a ONG. Comprometiam-se a não comprar gado diretamente de áreas invadidas ou desmatadas a partir de outubro de 2009. E, a partir de 2011, não comprariam gado de áreas desmatadas nem por fornecedores indiretos. Dois anos depois, os frigoríficos formalizariam acordo semelhante com o Ministério Público Federal, um Termo de Ajustamento de Conduta que ficou conhecido como “TAC da Carne”.
Considerando todas as iniciativas do governo federal na época, o desmatamento na Amazônia caiu gradualmente, chegando ao seu mais baixo ponto em 2012, quando “apenas” 4,5 mil km² de floresta foram desmatados, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um enorme contraste em relação à devastação de 2004.
Apesar da redução do desmatamento, as exportações do agronegócio na Amazônia não caíram. Ao contrário, subiram de 38,9 bilhões de dólares em 2004 para 95,7 bilhões em 2012, segundo dados do próprio Ministério da Agricultura. Na época, o Brasil tornou-se um interlocutor respeitado internacionalmente em questões ambientais e de mudanças climáticas, já que tinha serviços concretos para mostrar.
O quadro começou a se degenerar na segunda gestão de Dilma Rousseff, mas o vento virou em definitivo sob o governo Bolsonaro. A fiscalização sobre os fornecedores indiretos – os ilegais que criam o gado e depois despacham os bichos para fazendas legalizadas – tornou-se virtualmente inexistente.
Fonte: Revista Piauí.