O aparecimento de 80 golfinhos mortos na costa turca no mês passado dificilmente será o mais dramático efeito da guerra lançada pela Rússia contra a Ucrânia, onde o número de civis mortos atingia nesta quarta-feira, 4.149, incluindo 267 crianças, com o país a suportar perdas económicas superiores, para já, a 560 mil milhões de euros. Mas é um prenúncio para outro tipo de consequências que a guerra na Ucrânia já está acontecendo e que se vão acentuar nos próximos meses: o desastre ambiental.
A guerra deixou a preocupação com as alterações climáticas para segundo plano. Alguns números do século XX ajudavam a pintar um retrato negro do problema: 15 milhões de toneladas de petróleo foram despejadas no Oceano Atlântico durante a Segunda Guerra Mundial; a Guerra do Golfo contribuiu para 2% de todas emissões de CO2 associadas aos combustíveis no ano de 1991; 44% das florestas do Vietnam foram destruídas pelo “agente laranja” lançado pelos EUA durante a guerra naquele país.
A guerra na Ucrânia não é exceção no que toca ao impacto ambiental e o aparecimento de golfinhos mortos na costa turca é o primeiro sinal de que as consequências climáticas e ambientais do conflito vão permanecer durante várias gerações.
A explicação mais provável para a morte dos golfinhos no Mar Negro prende-se com a enorme poluição sonora causada pela intensa atividade militar na região. As ondas sonoras produzidas e emitidas pelos navios de guerra, pelos aviões militares, pelos mísseis e pelos bombardeamentos, bem como os sonares dos navios, perturbam os sistemas de geolocalização naturais dos golfinhos, deixando os animais profundamente desorientados e suscetíveis à doença e à morte.
Mas os impactos ambientais da guerra na Ucrânia não se resumem à morte dos golfinhos que cruzam o Mar Negro.
A grande ameaça ambiental do momento atual do conflito vem de Mariupol, a cidade cercada, massacrada e destruída pelos russos por se tratar de um alvo estratégico que permite a Moscou criar uma ligação terrestre entre Donbass e a Crimeia. Ali, estima-se que tenham morrido dezenas de milhares de pessoas, um número que ainda está sendo apurado. Em maio, a Rússia reivindicou o controle total sobre a cidade e os últimos resistentes ucranianos, civis e militares, tinham procurado refúgio na fábrica Azovstal, um complexo industrial da era soviética, que ficou totalmente cercada pelos russos.
A fábrica, situada na zona costeira, mesmo junto ao Mar de Azov, foi um dos principais alvos dos bombardeamentos russos ao longo das últimas semanas.
Recentemente, a autarquia de Mariupol veio alertar para o desastre ambiental iminente na região: uma das infraestruturas críticas da fábrica é um depósito onde estão armazenadas milhares de toneladas de sulfeto de hidrogénio, um gás que resulta dos processos de laboração do complexo industrial e que é altamente corrosivo e venenoso.
Segundo a câmara de Mariupol, se este composto químico chegar ao Mar de Azov, “há uma ameaça de extinção completa” de toda a vida marinha naquele mar — e os efeitos poderão estender-se ao Mar Negro e ao Mar Mediterrâneo através dos estreitos que ligam estas massas de água.
Os obituários das espécies em extinção
A atual situação preocupante no Mar de Azov fala-nos da possibilidade de extinções em massa, uma realidade por vezes difícil de compreender, porquanto nos parece um tragédia da história antiga, como a dos dinossauros, ou uma difusa ameaça do futuro. Conseguimos, por exemplo, imaginar a extinção da espécie humana? Como seria o mundo sem nós? As alterações climáticas (motivadas, ou pelo menos acentuadas, pelos humanos) são frequentemente apontadas como uma das causas centrais para a futura e inevitável extinção da espécie humana.
Mas as extinções não são apenas um fenômeno da história antiga ou um cenário radical da ficção científica futurista: estão para acontecer hoje mesmo, muitas vezes sem que nos percebamos do desaparecimento de espécies de que nunca ouvimos falar.
Recentemente, o jornal britânico The Guardian começou a publicar regularmente, sob o título Extinction Obituaries (Obituários da Extinção), uma série de artigos que retratam exemplarmente o modo como há espécies a desaparecer da face da Terra nos nossos dias.
O primeiro, publicado no mês passado, refere-se ao po’ouli havaiano, um pequeno pássaro nativo daquelas ilhas americanas que foi declarado extinto em 2019. O último po’ouli, de saúde débil e já só com um olho, morreu em 2004, sob o olhar atento de um conjunto de cientistas que durante anos tentou sem sucesso salvar a espécie.
Dez anos depois, morria na Ilha do Natal — território australiano no Oceano Índico — o último lagarto da floresta, espécie muito comum naquela ilha nas décadas anteriores. Era uma fêmea, batizada com o nome “Gump” em homenagem à célebre personagem do cinema Forrest Gump, com quem partilhava uma profunda solidão. Antes da morte, os cientistas que procuravam salvar a espécie tentaram por todos os meios encontrar um macho com quem Gump pudesse acasalar, mas os esforços revelaram-se infrutíferos. A morte solitária de Gump, em maio de 2014, representou o fim de uma espécie.
John Woinarski, um cientista australiano que acompanhou Gump no final da vida, descreveu ao The Guardian a “estranha sensação” de estar em frente ao último indivíduo de uma espécie. “Estávamos olhando para o último indivíduo, sabendo que, quando o indivíduo morrer, algo que vai inevitavelmente acontecer, será o fim daquela longa história evolutiva. É uma cicatriz na nossa consciência.”
A história mais preocupante de todas será, porventura, a do melomys de Bramble Cay, um pequeno roedor que terá sido a primeira espécie de mamíferos extinta diretamente devido aos efeitos das alterações climáticas provocadas pelos humanos.
O melomys vivia apenas em Bramble Cay, um cayo (pequena ilha arenosa habitualmente formada na superfície de um recife de coral) com menos de quatro hectares de área, nas águas do Índico entre a Austrália e a Papua Nova Guiné. De dimensão minúscula — 100 metros de largura por 250 de comprimento — e praticamente rasa (o ponto mais alto tem três metros de altitude), a ilha é muito suscetível a qualquer alteração ambiental, particularmente a qualquer subida do nível do mar.
Foi justamente a subida do nível do mar — que sabemos hoje estar diretamente ligada ao aquecimento global acentuado pela atividade humana — que mais contribuiu para o desaparecimento dos melomys: a intrusão da água salgada cada vez mais no interior da ilha matou grande parte da vegetação de que dependiam os pequenos roedores.
Na década de 1970, havia registo de centenas de indivíduos na ilha; em 2004, já só restava uma dezena. Os esforços feitos em 2011 e 2014 para capturar alguns indivíduos e os transportar para uma região onde pudessem procriar em segurança não deram em nada: os cientistas não encontraram um único indivíduo em toda a ilha. Em 2015, a espécie foi declarada extinta.
São três exemplos, mas o po’ouli, o lagarto da floresta e o melomys não são caso único nem serão as últimas espécies a desaparecer do planeta no nosso tempo de vida. A lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza dá conta de pelo menos 40 mil espécies ameaçadas de extinção em todo o mundo. A série de obituários da extinção do The Guardian não deverá, por isso, acabar tão cedo.
Fonte: O Observador