La Meduse, o horror do naufrágio que abalou a França no século 19

Naufrágios são parte do imaginário desde que o ser humano começou a navegar milhares de anos atrás. A história de naufrágios famosos e quase sempre trágicos imediatamente vêm à cabeça quando pensamos ou lemos sobre a fatalidade. Mas, conhecemos muito pouco sobre o La Meduse que provocou horror na França do século 19, e imortalizou o pintor Théodore Géricault.

Por outro lado, quem não lembraria do mais icônico caso, o do Titanic, cujo comando e alto escalão ignoraram os avisos de icebergs em sua rota numa prova de soberba que resultou em milhares de mortos?

Ou, para os conhecedores, a saga do baleeiro Essex que afundou depois de ser abalroado por um cachalote de 26 metros, em pleno vazio do Pacífico? A tripulação pega o que consegue às pressas, e embarca em botes. Durante meses enfrentam provações insuportáveis, entre elas tirar a sorte e escolher quem morreria para ser comido pelos companheiros.

A horripilante história do Essex foi a fonte de inspiração para Herman Melville escrever o clássico Moby Dick. Mas, e sobre o La Meduse que abalou a França no século 19; alguém lembra a história?

O começo errado para um fim trágico

A dramática sequência de irresponsabilidades, de covardia, de estupidez, desemboca inevitavelmente numa catástrofe humanitária. Antes, vamos contextualizar..

O episódio aconteceu durante os primeiros anos da Restauração, o regime nascido na França em 1815 após a derrota definitiva de Napoleão e o regresso da dinastia dos Bourbon ao poder.

A sociedade da época estava dividida, aturdida pelos fatos políticos, e ressentida pelas guerras napoleônicas que custaram milhares de vidas. Foi neste contexto, o da paz afinal, que a Inglaterra devolveu à França algumas de suas possessões na África.

Para retomar a posse, a França organiza expedições. Então, em Julho de 1816, a fragata La Meduse partiu juntamente com uma flotilha da ilha de Aix, perto de Bordéus, com destino à cidade de Saint-Louis, no Senegal.

Os erros da empreitada

A expedição foi constituída por militares, funcionários e alguns colonos, e também, como era hábito na época, por vários cientistas que levavam material de observação.

A bordo do La Meduse seguia o coronel Julien Schmaltz, que Luís XVIII nomeara pouco antes governador do Senegal.

Mas, ao comando do navio principal, encontrava-se o oficial de marinha Hugues de Chaumareys, um antigo exilado relacionado com os círculos ultramonárquicos, mas que estava há mais de 20 anos sem navegar.

No decurso da viagem, o comandante Chaumareys cometeu múltiplos erros. Logo no início, distanciou-se dos restantes navios e fez a rota sozinho. Ignorou a importância do comboio. Desacostumado às lides do mar, ignorou também os conselhos de oficiais mais experientes, finalmente, enganou-se ao ler as cartas de navegação.

Quando se achava perto da Mauritânia, rumou para uma zona de águas pouco profundas, o chamado banco de Anguin.

Começava o horror que abalou a França.

A quilha do navio roça o fundo marinho

A quilha do La Meduse começou a roçar no fundo de areia e o navio encalhou no dia 2 de Julho a cerca de 50 milhas da costa. A princípio, os tripulantes tentaram novamente flutuá-lo, mas desencadeou-se uma violenta tempestade que danificou irremediavelmente o navio. Todos perceberam que era preciso abandonar a embarcação e alcançar à costa africana.

Foi um salve-se quem puder… O salvamento das quase quatrocentas pessoas que compunham a tripulação fez-se no meio de grande confusão, aumentada pelo álcool que circulava entre os marinheiros, incluindo o comandante.

Demonstrando caráter pusilânime, o capitão Chaumareys e os oficiais subiram para os botes, enquanto os 150 marinheiros e soldados, bem como uma cozinheira, amontoaram-se numa balsa improvisada, com 15 por 8 metros.

Vinte mortos na primeira noite

As primeiras 24 horas mostraram o tamanho da tragédia que mal começava. Vinte pessoas se afogaram e, na segunda noite, rebentou uma luta em que os que estavam armados mataram pelo menos 65 dos seus companheiros, sob o pretexto de que tinham se amotinado e queriam destruir a balsa.

Ao fim de uma semana restavam 28 sobreviventes

Ao fim de uma semana restavam 28 sobreviventes, mas ainda pareciam demasiados. Como muitos estavam doentes, gravemente feridos ou  enlouquecidos, depois de uma discussão ficou decidido lançar mais treze ao mar.

Enquanto isso, esfomeado, mastigou cintos de couro e chapéus numa tentativa desesperada de aplacar a fome.

O canibalismo se instaura

Ao mesmo tempo, a fome e a sede faziam estragos. Depois de se esgotar a carga de vinho (a água caíra ao mar), beberam água salgada e até a própria urina. Quanto à comida, dispunham de uma caixa de bolachas que acabou num só dia.

No terceiro dia, ocorreram os primeiros atos de canibalismo.

“Víamos aquela comida horrível como a única forma de prolongar a nossa existência”, teria dito um dos sobreviventes. Os mais fortes cortavam a carne dos cadáveres em tiras e as deixavam secar ao ar antes de comerem.

Foram treze dias de terror à deriva, quando os quinze sobreviventes avistaram uma embarcação que se aproximava.

Era um navio da flotilha que zarpara com o La Meduse e chegara ao destino em Saint-Louis. Mas a história não acabaria só nisso…

Naufrágio da fragata La Meduse

Em 1817, dois dos sobreviventes, o cirurgião Jean-Baptiste Savigny e o engenheiro-geógrafo Alexandre Corréard publicaram o livro Naufrágio da fragata La Meduse. Relato dos fatos que aconteceram na balsa, onde denunciavam tanto a negligência e a covardia do comandante como as atrocidades dos marinheiros aterrorizados e bêbados.

Desencadeou-se então uma indescritível comoção na França

Gazetas, panfletos e gravuras começaram a evocar com todo o pormenor o horror do acontecido. A oposição ao regime dos Bourbon aproveitou o assunto para denunciar a incompetência da monarquia restaurada, paraçar a demissão do ministro da Marinha e instituir um conselho de guerra contra Chaumareys, que acabou condenado a três anos de prisão.

Um artista de 28 anos decide imortalizar o episódio

E, neste clima de indignação, um artista de 28 anos decidiu imortalizar o episódio num grande quadro. Théodore Géricault já chamara a atenção dos críticos, mas acabara de perder uma bolsa para prosseguir os estudos de pintura em Roma. Ele precisava de uma obra de qualidade para relançar a carreira. Para o efeito, nada melhor do que um tema atual e trágico como o naufrágio do La Meduse.

Novo escândalo em exposição artística

A população já havia quase esquecido o incidente quando aconteceu uma exposição no Salão de Paris e a obra foi exposta.

Apesar do seu título banal, Cena de naufrágio, a tela realista demais para a época causou furor, e entrou para a história. Junto com ela, o caso dramático do La Meduse jamais saiu de pauta desde então.

Fonte: Mar Sem Fim.

Imagem: sol.sapo.pt.