Pesquisadores dos EUA e Canadá têm registrado, nas últimas décadas, um declínio acentuado em suas populações de aves. No total, a abundância de pássaros no Hemisfério Norte caiu 29% em cinquenta anos. A tendência de queda afeta mais alguns grupos do que outros, mas a perda de indivíduos de uma espécie em particular tem preocupado a comunidade científica e civil norte-americana: a de andorinhas-azuis.
A andorinha-azul (Progne subis) é uma espécie com longa história de interação com seres humanos. Nos Estados Unidos e Canadá, há centenas de anos elas fazem parte da cultura das populações indígenas, que disponibilizavam locais para que as aves fizessem seus ninhos. Atualmente, em grande parte do Hemisfério Norte, elas dependem totalmente das construções feitas pelo homem, como cabaças perfuradas e caixas de madeira, para formar seu lar.
Esse nível de interação fez com que a espécie fosse adotada – e adorada – pela comunidade. Por isso, a queda no número de indivíduos tem preocupado. Embora não esteja listada como ameaçada pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), a população geral de andorinhas-azuis vêm sofrendo um declínio de 0,8% ao ano nas últimas cinco décadas.
Essa situação é ainda pior para as andorinhas que ocupam as regiões sul, leste e central dos EUA e leste do Canadá, onde a taxa de redução populacional chega a 1,5% por ano.
Para entender porque as aves destes locais estão morrendo mais do que as outras, pesquisadores norte-americanos deram início, em 2017, a uma investigação que buscava entender qual a ameaça comum a essas aves, mesmo elas vivendo em locais tão diferentes.
A resposta foi encontrada em outro continente: o nosso. A característica comum às andorinhas que vivem nas regiões onde há maior declínio é o fato de que todas migram para a região amazônica da América do Sul, ao contrário das demais populações, que migram para as regiões leste e sudeste do continente sul-americano.
Uma ave que une continentes
A andorinha-azul é uma ave migratória que faz percursos de 8 a 20 mil quilômetros entre a América do Norte, onde vive e se reproduz, e a América do Sul, para onde vem no inverno em busca de temperaturas mais amenas.
Elas são facilmente reconhecidas por seu padrão de voo e comportamento: a revoada de grandes grupos de andorinhas-azuis no entardecer, não raro, é comparada aos movimentos do balé. Os machos adultos têm o corpo azul-escuro, quase púrpura, outra característica da ave.
Foi por isso que, em 2018, um grupo de pesquisadores da Purple Martin Conservation Association (EUA) e da University of Manitoba (Canadá) vieram ao Brasil em busca do maior dormitório da espécie na América do Sul que se tinha conhecimento, escondido em meio à floresta amazônica.
“Eles explicaram que ninguém sabia o que estava acontecendo com elas aqui que justificasse o declínio na América do Norte, mas que eles desconfiavam que alguma coisa poderia estar acontecendo para causar o que vinham observando por lá”, explica Erika Hingst-Zaher, pesquisadora do Instituto Butantan, participante do Projeto Andorinha-Azul no Brasil e membro do projeto multi institucional Rede de Vigilância de Virus (PREVIR – MCTI).
O grande dormitório
Foi na porção inicial do Rio Negro, no estado do Amazonas, em uma pequena ilha chamada Comaru, os pesquisadores norte-americanos, liderados por Mario Cohn-Haft, ornitólogo do INPA, encontraram o grande dormitório das andorinhas-azuis vindas do Hemisfério Norte.
Entre janeiro e abril, é nesta ilha do município de Iranduba, a cerca de 30 quilômetros de Manaus, que a espécie passa o verão se preparando para a longa viagem de volta a seu local de reprodução.
O primeiro avistamento da espécie na região foi feito em 1816, de acordo com um artigo publicado em novembro de 2021 na revista científica Ornithology Research, mas, segundo Erika Hingst-Zaher, o estudo da espécie no Brasil ainda engatinha.
Penas contaminadas
O Projeto Andorinha-Azul do Brasil é uma extensão da mesma iniciativa existente há décadas nos Estados Unidos, a Purple Martin Conservation Association (PMCA). Ele tem como parceiros, além da própria PMCA, a universidade canadense de Manitoba (University of Manitoba), a Northern Arizona University (NAU) e os brasileiros Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e Instituto Butantan.
Além do monitoramento das rotas de migração da andorinha-azul, o projeto também tenta descobrir o que está levando esses pássaros à morte, o ponto inicial desta história.
Ao analisar a composição química das penas das aves que passaram pela Amazônia, pesquisadores do projeto descobriram altas concentrações de um metal que representa grande ameaça à saúde não só de humanos: o mercúrio.
De acordo com Jonathan Maycol Branco, pesquisador que estudou os efeitos do mercúrio nas andorinhas-azuis, o metal, principalmente na forma metilada, é uma substância altamente tóxica que pode levar a uma série de efeitos potencialmente deletérios em animais. A pesquisa foi desenvolvida durante seu mestrado no Departamento de Ecologia da Universidade de São Paulo (USP).
Os grandes responsáveis pela presença de altos índices de mercúrio nas penas das andorinhas-azuis são o garimpo de ouro e as centenas de hidrelétricas existentes na bacia amazônica.
A relação do mercúrio com o garimpo é mais conhecida: o metal é usado por garimpeiros para facilitar a separação do ouro e traz, como consequência, a contaminação de fauna e flora.
Já a ligação com as hidrelétricas precisa de mais explicação. Por suas características geológicas, o solo da Bacia Amazônica é naturalmente rico em mercúrio. Ao longo das décadas de 1990 e 2000, pesquisadores do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mapearam o mercúrio nos diferentes ecossistemas do Rio Negro.
O que eles descobriram foi que, ao longo dos 1.700 quilômetros que as águas escuras do rio percorrem, ladeando uma floresta densa e fechada, sem sinal de atividade industrial ou de mineração, os níveis de mercúrio no solo são cerca de quatro vezes superiores à média mundial.
Quando esse solo rico em mercúrio natural é inundado para dar lugar a represas, a vegetação nas antigas margens de decompõem, favorecendo o crescimento de micróbios que convertem o mercúrio naturalmente encontrado em metil mercúrio, uma substância tóxica com alta capacidade de acúmulo (bioacumulação) em peixes e outros organismos aquáticos, passando por toda a cadeia alimentar.
Além disso, com as barragens, as águas se tornam mais lentas, favorecendo o processo de conversão do mercúrio pelas bactérias.
“O que acontece é o processo que chamamos de lentificação, que é a diminuição do fluxo da água. A água passa a fluir mais lentamente e isso permite que qualquer material que esteja em suspensão, inclusive o mercúrio, se deposite no substrato. No substrato costumamos encontrar grandes quantidades de bactérias, que tendem a metilar o mercúrio já encontrado na água. O problema é que o mercúrio metilado é muito mais danoso. Por ser um mercúrio orgânico, ele tende muito mais a se fixar em tecidos”, explica Branco.
As andorinhas-azuis são aves insetívoras. Quando estão em sua passagem pela Amazônia, elas consomem insetos formados a partir de larvas aquáticas, que foram alimentadas por outros organismos aquáticos contaminados com o mercúrio.
O pesquisador da USP salienta que, embora a concentração de mercúrio encontrada nas penas das andorinhas-azuis esteja abaixo dos limites da literatura para um impacto severo na saúde e na reprodução, os resultados de sua pesquisa sugerem que o crescimento dos níveis de mercúrio na Bacia Amazônica, seja pelo aumento do número de barragens ou pelo garimpo, podem levar a uma perda severa de biodiversidade num futuro próximo, não só para as andorinhas-azuis.
O futuro da Progne subis
O estudo sobre a presença de mercúrio na fauna brasileira ainda é muito novo no país. “Acho que estamos mais atentos, agora, para o problema da contaminação na nossa biodiversidade”, diz Erika Hingst-Zaher.
Para entender os impactos do metal nas populações das Progne subis que passam parte do ano em solo brasileiro, pesquisadores parceiros no projeto Andorinha Azul devem iniciar um novo projeto de pesquisa, desta vez voltado para medição de mercúrio em exemplares de coleções museológicas com diferentes idades.
“Pretendemos usar essa mesma técnica de extrair contaminante das penas em espécimes que estão em coleções científicas de museus de 100, 50 anos atrás. Tenho certeza que vamos encontrar resultados preocupantes, que mostram a velocidade com que as alterações no ambiente nos últimos anos vêm causando problemas para a nossa biodiversidade”, diz a pesquisadora.
Fonte: ((O))Eco.