O uso excessivo e indiscriminado de antibióticos na saúde humana e na agropecuária favorece, há décadas, o surgimento de variedades de bactérias resistentes a esses medicamentos, causadoras de infecções cada vez mais difíceis de combater. O resultado é a morte de centenas de milhares de pessoas todos os anos no mundo. O total de óbitos atribuídos ao adoecimento por bactérias que não sucumbem aos antibióticos disponíveis passou de 1,06 milhão por ano em 1990 para 1,14 milhão em 2021, de acordo com a mais ampla e recente estimativa do problema, apresentada em setembro passado em um artigo na revista científica The Lancet. O mais preocupante: os óbitos por bactérias resistentes devem continuar subindo em todas as regiões do globo até 2050 em um ritmo mais acelerado do que nas últimas três décadas.
O trabalho foi realizado por centenas de pesquisadores, alguns deles brasileiros, que integram uma aliança internacional para o acompanhamento da resistência aos antibióticos e outros medicamentos – a GBD 2021 Antimicrobial Resistance Collaborators. Os autores chegaram a essas estimativas ao combinar informações sobre a causa da morte com dados de internações hospitalares e venda e uso de antibióticos, além do perfil de resistência de 22 espécies de bactérias aos mais potentes antimicrobianos disponíveis, coletados em 204 países e territórios entre 1990 e 2021.
O cenário projetado para o futuro próximo, levando em conta o crescimento e o envelhecimento da população, é sombrio: as mortes por infecções bacterianas resistentes a antibióticos devem aumentar no mundo todo até 2050 e chegar a 1,91 milhão de óbitos ao ano. É uma elevação média no total de óbitos atribuídos a esses patógenos de 69,6% em relação a 1990, podendo ser ainda maior em regiões como o sul da Ásia, onde está a Índia, o país mais populoso do mundo, e a América Latina e o Caribe. Se o quadro geral continuar o mesmo e não surgirem novos antibióticos capazes de debelar essas bactérias nem forem adotadas medidas eficazes (e já conhecidas) para evitar infecções, 39,1 milhões de pessoas podem morrer de 2025 a 2050 como resultado de infecções por microrganismos resistentes aos antibióticos – quase 10% desses óbitos devem ocorrer na América Latina e no Caribe.
O quadro se torna ainda mais assustador quando às mortes atribuídas aos patógenos resistentes se somam também as associadas, aquelas nas quais havia infecção por bactérias resistentes, mas elas não necessariamente foram as causadoras do óbito. Foram 4,78 milhões de óbitos de ambos os tipos em 1990 e 4,71 milhões em 2021. No período, houve uma ligeira queda porque diminuíram muito as fatalidades por sepse (resposta desajustada do sistema de defesa à infecção), em consequência de avanços no tratamento. Esse número, no entanto, deve chegar aos 8,2 milhões em 2050, em razão do aumento esperado de mortes de infecções por bactérias resistentes entre as pessoas com mais de 50 anos. De hoje até meados deste século, os óbitos diretamente provocados por bactérias resistentes e aqueles em que elas estão presentes, mas não foram as responsáveis pela morte, podem tirar a vida de 169 milhões no mundo, mais do que a população de muitos países.
“Os medicamentos antimicrobianos são um dos pilares da assistência médica moderna, e o aumento da resistência a eles é uma grande causa de preocupação”, afirmou, em um comunicado à imprensa, o epidemiologista iraniano-americano Mohsen Naghavi, líder das pesquisas sobre resistência a antimicrobianos no Instituto de Métricas de Saúde (IHME), na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, e autor principal do artigo da The Lancet. “Entender como as tendências nas mortes por infecções resistentes aos antimicrobianos mudaram ao longo do tempo e como provavelmente mudarão no futuro é vital para tomar decisões baseadas em informações que podem ajudar a salvar vidas”, completou.
Parte do aumento registrado entre 1990 e 2021 nos óbitos atribuídos e nos associados às bactérias resistentes é consequência do crescimento da população e da mudança no perfil etário. Em 1990, havia cerca de 5,3 bilhões de habitantes no mundo, e aproximadamente 6% tinham mais de 65 anos. Em 2021, a população mundial havia chegado a 7,9 bilhões, e os idosos já eram quase 10%. Os mais velhos são mais suscetíveis a infecções por terem o sistema imune mais frágil, além de mais doenças crônicas, que podem complicar o combate às bactérias. Segundo os autores do estudo, as mortes por infecções bacterianas resistentes a antibióticos nesses 31 anos só não aumentaram mais porque houve uma queda importante entre as crianças com até 5 anos: nesse grupo etário, os óbitos diminuíram mais de 50% – no período, as mortes aumentaram em todos os grupos com mais de 25 anos, em especial entre aqueles com mais de 70 anos, no qual o crescimento foi superior a 80%.
“A queda das mortes entre as crianças mostra que algumas intervenções já conhecidas, como o uso de vacinas para prevenir infecções bacterianas, realmente funcionam”, afirma a neonatologista Cristina Carvalheiro, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), uma das autoras do estudo da The Lancet. “Vacinar de maneira abrangente as crianças ajuda a evitar infecções e a necessidade do uso de antibióticos, o que pode diminuir as oportunidades de surgimento da resistência microbiana”, explica.
Uma parte do avanço nas mortes em geral se deve, claro, à disseminação das bactérias resistentes aos antibióticos. Esses medicamentos, que inibem o crescimento dos microrganismos ou os matam, podem ter origem natural – produzidos por fungos ou outras bactérias – ou sintética e agem sobre diferentes estruturas das bactérias. Expostas à concentração adequada dos antibióticos e por tempo suficiente, os microrganismos em geral morrem. Se a dosagem e a duração do tratamento forem inferiores ao necessário para eliminá-las, uma parte pode sobreviver e se multiplicar, acumulando alterações genéticas que permitem escapar aos fármacos. Com o uso intensivo desse tipo de remédio na saúde humana e na produção de alimentos, para proteger de doenças e induzir ganho de peso nos animais de criação, as bactérias são continuamente expostas a ele, o que favorece a seleção das variedades resistentes (ver Pesquisa FAPESP nº 335).
No trabalho publicado na The Lancet, os pesquisadores projetam o que pode acontecer de 2025 a 2050 em três cenários. No primeiro – e mais provável –, as mortes por infecções bacterianas (resistentes ou não) seguem sem grandes alterações. No segundo, a indústria farmacêutica consegue criar novos antibióticos, em especial contra bactérias do tipo gram-negativo, que têm parede celular mais estruturada – um número crescente de espécies gram-negativas apresenta resistência contra os mais potentes remédios existentes. E, no terceiro, melhoram-se os níveis de vacinação, os cuidados de saúde para prevenir infecções e o acesso adequado aos antibióticos atuais, além do uso correto deles – a falta de antibióticos ainda é comum em países pobres.
Se nada mudar (cenário 1), esperam-se 169 milhões de mortes associadas às infecções por bactérias resistentes no mundo para as próximas duas décadas e meia. Com novos antibióticos (cenário 2), 11,1 milhões de pessoas seriam salvas, segundo os cálculos dos pesquisadores. O impacto maior, porém, seria obtido no terceiro cenário: medidas de prevenção de infecções e o uso adequado dos antibióticos já existentes poupariam 92 milhões de vidas.
O infectologista Matias Salomão, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP, integra uma equipe internacional que desenvolveu um teste para a detecção mais rápida de bactérias multirresistentes em hospitais. Em sua opinião, o desafio para o controle e a prevenção das infecções por bactérias resistentes ultrapassam os muros hospitalares. “Um exemplo é o das instituições de longa permanência para idosos, onde o isolamento de pessoas com suspeita de infecção não pode ser feito como em uma UTI.”
O problema não está só aí. O controle das infecções vai além da saúde humana. Em um estudo publicado na edição impressa de dezembro da revista Emerging Microbes & Infections, pesquisadores da Universidade Agrícola da China analisaram a presença de bactérias resistentes a antibióticos em toda a cadeia produtiva de frangos e porcos da cidade de Chengdu, de 20,9 milhões de habitantes. Esses microrganismos foram identificados em 4,7% das criações de frango e em 2% das de porcos. Essa frequência subiu, respectivamente, para 7,6% e 22,4% nos abatedouros e atingiu 65,5% e 34,2% nas carnes disponíveis nas redes de varejo. “O enfrentamento do problema requer uma abordagem integrada e multissetorial, que considere a saúde humana, o trato com animais e o meio ambiente”, escreveram os autores.
No Brasil, para promover o uso adequado de antibióticos na produção e no cuidado de animais, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) começou a colocar em prática, a partir de 2018, o braço do PAN-BR voltado para a agropecuária, o PAN-BR Agro. O plano, que se encontra em sua segunda fase, desenvolveu e implementou um programa de vigilância e monitoramento da resistência a antimicrobianos no país, elaborou guias para uso racional desses medicamentos em animais e pôs em funcionamento o Agromonitora, serviço que registra a venda de antimicrobianos de uso veterinário, entre outras ações.
Fonte: Revista Pesquisa – FAPESP
Imagem: lustração computacional.
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