Calor, chuva e eventos extremos: 6 saídas para criar cidades mais resistentes a mudanças do clima

Um temporal que deixa moradores sem luz elétrica por seis dias. Ondas que extrapolam a faixa de areia e chegam à calçada. Uma seca recorde que seca rios e trava o transporte de cargas e suprimentos no meio da maior floresta tropical do rio. Fumaças de incêndios ambientais que sufocam a população. Enchentes e deslizamentos que matam centenas.

Esses são alguns dos eventos que tomaram as manchetes nos últimos meses. Mostram como as mudanças climáticas se intensificaram e tornaram mais frequentes desastres ambientais no Brasil. Os relatos se somam a dados que comprovam a emergência: a incidência desses desastres em áreas urbanizadas aumentou cinco vezes desde 1991, conforme levantamento do MapBiomas, rede colaborativa formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia.

É preciso que as cidades, onde a maior parte da população brasileira vive, se preparem para evitar perdas humanas e também a interrupção de serviços básicos, alertam os especialistas. A palavra-chave, destacam, é adaptação.

“A grande diferença da mitigação (das mudanças climáticas) para adaptação, é que mitigação é uma ação que tem de ser feita globalmente. Já a adaptação tem que ter um contexto local muito forte para entender quais são as áreas e populações mais vulneráveis”, diz Mercedes Bustamante, professora de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB), que já participou de relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão das Nações Unidas que reúne cientistas.

Por diversos motivos, como desastres menos frequentes no passado e falta de vontade política, estamos “muito atrasados”, avaliam especialistas. “A adaptação é uma ciência desassistida”, diz Denise Duarte, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), citando o climatologista Carlos Nobre.

O nível de preparação necessário demanda recursos e priorizações. “Por ora, vamos ter de agir com mudanças emergenciais, com educação, modificação de hábitos e uma atuação mais direta da saúde”, defende o médico patologista Paulo Saldiva, professor titular da USP.

Um plano eficaz precisa encarar as desigualdades, alertam os especialistas. “O mote principal da agenda de adaptação deve ser o impacto sobre as populações vulneráveis”, diz Henrique Evers, gerente de Desenvolvimento Urbano do WRI Brasil. Entre elas, mulheres, crianças, idosos, pessoas negras e em situação de rua, listam os profissionais ouvidos pela reportagem.

Após ouvir os especialistas e consultar planos de ação climática de diversas cidades no Brasil e no mundo, o Estadão listou ações para adaptação.

1 – Saúde pública: dos hospitais ao combate a mosquitos

Ondas de calor ou extremo frio elevam significativamente as internações hospitalares e a mortalidade, conforme Saldiva. Um estudo, do qual ele fez parte, foi publicado em 2015 pela revista científica Lancet e analisou o risco de mortalidade atribuído à temperatura ambiente alta e baixa em 700 cidades pelo mundo. O trabalho mostra que, em São Paulo, quando bate 30°C no termômetro, a alta nas mortes é de 50%.

Segundo o patologista, as pessoas não morrem de hipotermia ou hipertermia, que são condições muito raras, mas sim de complicações em doenças crônicas, principalmente cardiovasculares.

As ilhas de calor, diz ele, são um problema complexo. Mas, de forma emergencial, sugere uma conexão entre os responsáveis pela previsão do tempo com o Ministério da Saúde. Quando a temperatura sair da zona de conforto, haveria um alerta para hospitais se prepararem para mais atendimentos. Já as pessoas, principalmente pacientes com doenças crônicas, se hidratarem mais e buscarem locais frescos e ventilados.

“Agricultores e pecuaristas receberiam avisos da Embrapa e do Ministério da Agricultura dizendo que vai fazer muito calor, e que é preciso aumentar, por exemplo, a ventilação no galinheiro e a oferta de água aos animais”, exemplifica Saldiva.

Ainda falando de doenças infecciosas, quem se beneficia de mais chuvas e calor são os vetores das arboviroses, doenças transmitidas por insetos ao humano, como dengue, zika e chikungunya transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti “Facilita a eclosão das larvas”, acrescenta Saldiva.

Neste caso, o que indica é principalmente a remoção efetivo de lixo urbano. “Não adianta fumegar (inseticida) ou colocar areia no vaso da sua casa, porque há outros recipientes fora da sua casa acumulados nas ruas que funcionam como criadouros.” Os especialistas também destacam a necessidade de vacinas contra essas doenças e esperam ansiosos por medidas mais eficazes de controle dos vetores.

2 – Expansão das áreas verdes

Ter mais áreas verdes é importante não só para promover mais conforto térmico, mas também para prevenir inundações, ao propiciar mais absorção de água. Cidades como Hong Kong investem no conceito de “cidade-esponja”, com foco em revegetação, criação de parques e lagoas artificiais e pavimentação de material permeável (poroso).

Não se trata necessariamente de criar grandes parques. Às vezes, é necessário procurar com uma lupa pequenos espaços onde a vegetação pode ser inserida, como biovaletas (canteiros de calçadas), rótulas e quarteirões que possam servir de pocket parks, como é feito em Nova York.

A arborização das cidades, no entanto, conforme a bióloga Mercedes Bustamante, deve levar em conta o ritmo crescente de eventos climáticos extremos. Rajadas de vento superiores a 100 km/h derrubaram centenas de árvores na sexta-feira, 3, em São Paulo. A consequência foi de apagões na rede elétrica.

Para escolher as plantas adequadas, a professora indica avaliar o sistema de raízes e a arquitetura da copa da árvore, para saber se elas têm capacidade de tolerar impactos, como fortes precipitações e ventos; e observar se o local de plantio tem uma infiltração de água suficiente ou se já está completamente impermeabilizado.

3 – Remover população em área de risco ou fazer obras de contenção

Em outubro, o MapBiomas divulgou a atualização anual da urbanização no Brasil com base em imagens de satélite. A ocupação urbana em área de risco, mais suscetível a desastres climáticos, entre 1985 e o ano passado, cresceu 2,8 vezes, com isso, atingiu os 123 mil hectares.

Pela primeira vez, o relatório destacou o avanço da urbanização em beiras de cursos d’água (distância vertical de um rio, que aumentou quatro vezes no período de análise. Elas não necessariamente são consideradas áreas de risco, mas sim de alta vulnerabilidade para inundação.

Cabe à prefeitura decidir onde é necessária remoção imediata de moradores e onde é possível fazer obras de engenharia para garantir a segurança da população. Evers destaca que é preciso de uma política habitacional adequada, para evitar que a população precise se instalar em áreas de risco. “Essas populações são mais vulneráveis, porque a gente não endereça com sucesso o acesso à terra e à moradia nas nossas cidades.”

4 – Mobilidade e atendimento emergencial bem distribuído

Reduzir a quantidade de deslocamentos, incentivar meios de transporte menos poluentes (como bicicletas e ônibus elétricos) e reduzir as emissões de gases de efeito estufa por veículos estão entre as sugestões de especialistas para reduzir o impacto do trânsito no aquecimento global. Mesmo na resposta a desastres, a questão da mobilidade tem papel central.

Mercedes afirma que as cidades também precisam ter centros de atendimento à população para dar vazão a problemas causados por eventos extremos – e devem estar bem distribuídos territorialmente. “Temos uma cidade que, sem esses eventos extremos, já tem dificuldade de mobilidade. Isso significa que precisa distribuir centros de atendimento pela cidade. Na situação emergencial, o atendimento não pode se concentrar em áreas onde as pessoas não consigam chegar”, diz.

Denise Duarte, da USP, cita ainda a necessidade de criar oásis urbanos ou refúgios climáticos, onde mais há circulação de pessoas. O princípio deles é simples: um espaço com vegetação, principalmente arbórea para fazer sombra, e água.

Eles não precisam ser gigantes, como o Parque do Ibirapuera, na zona sul paulistana, até para que sejam melhores distribuídos pela cidade e de fácil acesso. Um espaço que pode funcionar para isso é a parte externa de escolas, como ocorre em Paris.

5 – Preparar as cidades costeiras

Boa parte da população brasileira se concentra em zonas costeiras. “Com a subida do nível do mar, essa população vai ficar muito mais exposta”, diz Mercedes.

Ela destaca que é preciso readequar a infraestrutura construída próximas ao oceano, e, sobretudo, reconstituir a vegetação dali. “Recifes de coral e áreas de mangue são as primeiras linhas de proteção da costa”, explica.

Em locais costeiros ainda estão em processo de urbanização, é preciso que o licenciamento de construção, além de preservar a cobertura vegetal nativa, leve em conta os extremos climáticos. “Para que as construções novas não venham exatamente a refletir o padrão de clima do século 20, que não vai existir mais”,alerta Mercedes.

6 – Educação para viver em um novo clima: escolas como ponto central

Por considerar crianças e jovens como um grupo vulnerável, Mercedes diz que precisa haver adequação das escolas às mudanças climáticas. Instituições em área de risco precisam ter planos claros e bem divulgados de evacuação, e as unidades precisam ter refrigeração adequada. “Tem dados que mostram que o rendimento das crianças diminui à medida que a temperatura da sala de aula aumenta. Elas também sofrem com o estresse térmico.”

A professora também destaca que a escola é um ponto central para atividades educativas de adaptação ao clima. “É preciso pensar que essa geração hoje nas escolas é a geração que efetivamente vai conviver por mais tempo com os impactos do clima”, ressalta a pesquisadora, também presidente da Capes, órgão do Ministério da Educação.

Fonte: Estadão.

Foto: Andre Penner/AP.