Calor fez nível do mar aumentar mais no Brasil do que no resto do mundo

Em 2023, o nível dos oceanos subiu em todo o planeta, mas o litoral brasileiro foi um dos lugares que registrou uma das maiores elevações. O calor recorde foi o principal motivo. Os oceanos têm avançado por expansão térmica — porque a água quente se dilata. E os mares do mundo nunca foram observados tão quentes, com impactos sobre o clima, os rios e as cidades.

A elevação do mar na costa brasileira é um dos destaques do relatório “O Estado do Clima na América Latina e no Caribe em 2023”, da Organização Mundial de Meteorologia (OMM), apresentado nesta quarta-feira. Mais do que apenas um retrato do ano que passou, o estudo analisa a suscetibilidade da região às mudanças climáticas. O ano, dizem os cientistas, foi marcado por calor excepcional e anomalias não explicáveis por fenômenos conhecidos, como o El Niño.

A taxa de elevação do nível dos oceanos mais do que dobrou desde a década de 1990. Ela aumenta a cada ano desde 1993 e 2023 teve a maior elevação, registrou a média global de 3,42 mm/ano. Porém, na costa atlântica da América do Sul ela chegou a 3,96 mm. Parece pouco, mas é suficiente para afetar a vida das pessoas nas áreas costeiras.

A subida do mar tem diversas consequências. Ela erode o litoral, contamina o lençol freático com água salgada, mina as fundações de construções, causa afundamentos de terreno, agrava inundações provocadas por tempestades, faz ressacas se tornaram maiores e avançarem mais longe terra adentro.

— Quando se fala em elevação do nível do mar, as pessoas costumam imaginar um cenário de filme-catástrofe, com ondas gigantescas e cidades alagadas de uma só vez. Não é o que ocorre. Essa é uma tragédia lenta, o mar vai ano a ano tomando a terra. E não apenas na superfície, mas no subsolo, com intrusão marinha — explica o climatologista José Marengo, pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas e Desastres Naturais (Cemaden), um dos líderes da elaboração do relatório, que reuniu mais de 70 especialistas, quatro agências das Nações Unidas e 30 serviços meteorológicos nacionais.

Marengo diz que não surpreende num ano tão quente quanto 2023 que os oceanos tenham avançado por expansão térmica. O aumento do nível maior na América do Sul reflete o aquecimento do Atlântico, explica ele.

— Todo o Atlântico está muito quente. Isso se manifesta no clima, com chuvas intensas e ondas de calor, mas também no nível do mar — frisa.

Um dos lugares onde o avanço do mar se torna mais evidente é na Amazônia. Lá ocorre uma batalha de titãs, entre o Atlântico e o Amazonas, o rio mais volumoso da Terra. Gigante no continente, o Amazonas é um anão frente ao oceano, cujas águas salgadas a cada ano vão mais longe.

— São milhões de litros de água, um volume gigantesco do oceano pressionando a terra — diz Marengo.

No litoral do Amapá, na foz do Rio Amazonas, a erosão devido ao avanço do mar é visível. A derrota do poderoso Amazonas, que tem suas águas doces invadidas pelo sal, se nota no açaí. Palmeiras e outras plantas das margens morrem devido à contaminação pela água salgada do mar.

— O mar avança bem mais do que se pode ver na superfície. É um processo lento, no subsolo. Mas devemos pensar também, por exemplo, na água de poços litorâneos, que vai se tornando salobra, ou no afundamento gradual de construções — alerta o climatologista.

Na superfície, o impacto mais visível é nas ressacas, que podem chegar a áreas antes não atingidas. Em diferentes graus, é um processo global. Países como Estados Unidos, China e Holanda, todos têm cidades afetadas. No Brasil, Marengo destaca Rio de Janeiro e Santos como cidades que sofrem os impactos da elevação do nível do mar.

O estudo destaca ainda as chuvas extremas. Chamou atenção dos especialistas em especial a chuva do carnaval de 2023 no litoral de São Paulo, a mais intensa da já registrada no Brasil. Entre 18 e 19 de fevereiro, foram despejados 683 mm de chuva em apenas 15 horas, em São Sebastião, matando 65 pessoas e causados deslizamentos e alagamentos.

— Esse evento não teve precedente e até agora não foi superado em intensidade, em volume acumulado em tão pouco tempo. Foi um fenômeno atípico, que ainda está sendo estudado, e reuniu as piores condições possíveis num mesmo local — enfatiza.

A seca acompanhada por calor extremo na Amazônia foi outro destaque e começou antes do período de influência do El Niño, que agravou a situação. Os maiores símbolos da seca foram o Rio Negro e a mortandade de botos-cor-de-rosa.

Em 28 de setembro, as águas do Lago Tefé chegaram a 39,1 graus Celsius. Especialistas dizem que mais de 150 botos morreram devido ao calor. Os animais foram literalmente cozidos vivos em setembro e outubro.

A falta de chuva combinada ao calor (que aumenta a evaporação) baixou drasticamente o nível dos rios da Bacia Amazônica. Em 26 de outubro, o Negro, um dos maiores rios do mundo, chegou ao menor nível (12,70 metros, em Manaus) desde o início das medições, há 122 anos.

— Relatórios como esse oferecem dados e orientações sobre vulnerabilidades na saúde, na agricultura, na prevenção de desastres — diz Marengo.

O calendário avançou, mas as condições climáticas seguem extremas em 2024.

— O clima está muito instável. A princípio, teremos uma La Niña, que está evoluindo muito depressa. Mas como ela se comportará, não sabemos. O Atlântico segue quente e já deveria ter esfriado. Talvez ele esteja mesmo se tornando mais quente. Há muita incerteza — frisa o climatologista.

O ano de 2024 começou com ondas de calor e tragédias climáticas, sobretudo no Sul do Brasil, e será decisivo para o clima. A bola está com os oceanos, enfatiza Regina Rodrigues, professora de oceanografia e clima da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora do grupo que estuda o Atlântico e suas ondas de calor da Organização Meteorológica Mundial (OMM).

O clima da América do Sul é fortemente influenciado pelas condições oceânicas, destaca o pesquisador do Laboratório de Estudos do Oceano e da Atmosfera do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (LOA/Inpe), Luciano Pezzi.

— O Atlântico chama muito a atenção. Alguma coisa está acontecendo e é alarmante. O Atlântico está mais quente, o ar no continente também e o gelo antártico está em retração, tudo ao mesmo tempo. Isso tem impacto no clima, na pesca, na agricultura — frisa Pezzi.

A estranheza do Atlântico fica evidente quando se compara os El Niños, caracterizados pela elevação da temperatura da água no Pacífico Equatorial, cujas águas ficam muito mais quentes do que as dos demais mares. Pezzi diz que no poderoso El Niño de 1997 a temperatura do Atlântico estava normal, toda a anomalia, como o esperado, estava no Pacífico.

Mas no El Niño de 2023, o Atlântico já estava muito quente e segue assim até agora.

— Os mares são grandes reguladores climáticos. E parece que estamos entrando num regime de saturação dos mares. Há muita incerteza, mas o El Niño sozinho não explica muitos dos extremos recentes. O Centro-Oeste e o Sudeste têm aquecido demais — diz Pezzi.

O oceano tão quente não vai absorver todo o excesso de energia decorrente das emissões humanas e ele irá para a atmosfera e gerará mais calor. É um ciclo vicioso. Hoje se estima que os oceanos absorvam 87% do excesso de calor. Mas cientistas suspeitam que, saturados, os mares estejam emitindo mais do que absorvem calor.

— A percepção que temos é que o sistema climático está em transição para algo mais definitivo — sublinha Rodrigues.

Fontes: O Globo, Náutica.

Foto: Raw Pixel.