Grande tempestade — Petrópolis inundada — Rios que transbordam — Moradores em apuros — A cidade às escuras — Queda de barreiras — Armazém arrombado pelas águas.
Os títulos acima sobre as chuvas na cidade de Petrópolis e outras localidades poderiam fazer parte do atual noticiário sobre os efeitos das chuvas na região serrana do Rio de Janeiro. Mas foram publicados há mais de um século pelo Estadão, na edição de 13 de janeiro de 1909.
A semelhança dos relatos sobre as chuvas e suas consequências mostram que de lá para cá as medidas de prevenção ao fenômeno climático anual não foram tomadas ou não surtiram efeito.
“Hontem, ás 11 horas da noite, desabou sobre a cidade de Petropolis uma violenta tempestade, determinando rapidamente uma grande enchente do rio Píabanha e seus affluentes. Em pouco tempo, o volume das águas cresceu de tal modo, que á 1 hora da manhan de hoje já os rios transbordavam em vários pontos…
Em alguns pontos da cidade caíram barreiras, causando pânico entre os moradores dos prédios próximos…
Houve transbordamentos de rios em muitos outros pontos, impedindo o trânsito…
O desastre ocasionou a morte das menores Luiza, de 14 annos, e Angelina, de 12 annos, que dormiam no quarto. Aos gritos de socorro acudiram os vizinhos, que nada puderam fazer devido á escuridão da madrugada e á chuva torrencial que caia.”
(Estadão – 13/1/1909)
Ao longo dos anos seguintes, as páginas do jornal continuaram a mostrar a tragédia causada pelas chuvas no estado do Rio de Janeiro. A pior delas é de 1967, quando umatromba d’água na Serra das Araras deixou centenas de mortos naquela que é considerada uma das maiores tragédias do Brasil. Já nos primeiros relatos eram cerca de 400, mas o saldo final, com o passar dos dias, chegou a cerca de 1.700. Uma das cidades mais afetadas foi Piraí.
O rastro de água e lama destruiu 10 quilômetros da Via Dutra, soterrou carros, ônibus e propriedades rurais e urbanas nos municípios da região. A usina hidrelétrica Nilo Peçanha foi inundada e 70% do estado da Guanabara, atual Rio de Janeiro, ficou sem energia elétrica.
Em 1988, quando as chuvas deixaram 170 mortos, 600 feridos e 4 mil desabrigados, o Estadão alertava, num título de alto de página na edição de 26 de fevereiro: “Petrópolis pode viver nova tragédia”. A abertura do texto dava a letra das tragédias anunciadas que voltariam a acontecer no futuro: “Se medidas preventivas não forem tomadas para conter as encostas e evitar a ocupação urbana desordenada, em pouco tempo Petrópolis poderá viver uma tragédia ainda maior do que a ocorrida por causa das chuvas.”
Mais recentemente, em 2011, a tragédia das chuvas contabilizou um saldo de quase mil vítimas fatais. O número oficial foi de 916 mortos, enquanto o número de desabrigados era estimado em 25 mil.
Em 2013, quando a chuva voltou novamente a causar a morte de 33 pessoas e deixar vários estragos na região, o Estadão publicou que os radares meteorológicos de longo alcance, comprados logo após a tragédia anterior, ainda não haviam chegado dois anos depois. A reportagem também mostrava os problemas no repasse para Petrópolis de verbas do Governo Federal destinadas a desastres naturais.
Cada chuva na região serrana do Rio de Janeiro traz à tona o trauma da tragédia de 2011, quando deslizamentos e enchentes deixaram 918 mortos em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Foi a maior catástrofe climática do Brasil. Apenas a estação meteorológica do Centro de Teresópolis registrou 124,6mm de chuva num único dia, volume que era quase a metade da média histórica para aquele mês em toda a região. De acordo com os dados do Ministério Público, ao menos 99 vítimas seguem desaparecidas até hoje.
Na noite de 11 de janeiro daquele ano, em apenas três horas o volume de água ultrapassou a expectativa para todo o mês na região. Riachos viraram ondas avassaladoras e deslizamentos atingiram áreas urbanas e rurais como avalanches. As casas que não desabaram foram interditadas, mas muitas famílias voltaram a ocupá-las.
Em janeiro de 2021, dez anos após a tragédia, ainda havia pelo menos 86 mil pessoas vivendo em áreas de risco. Nos três municípios mais devastados, ainda existiam imóveis interditados desde aquela época, desabrigados recebendo aluguel social e à espera de casas prometidas e obras que nunca foram concluídas.
O número de mortos em Petrópolis, após a tempestade de terça (15/02), chegou a 120, segundo atualizou o Corpo de Bombeiros na madrugada da sexta-feira (18). Dos 101 corpos que estão no Instituto Médico Legal (IML), 65 são de mulheres e 36 de homens. Desses, 13 são menores.
Segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alerta, permanece muito alta a possibilidade de ocorrência de eventos de movimentos de massa na região serrana do Rio, especialmente em Petrópolis. Ainda de acordo com o Cemaden, esses fatores indicam um elevado nível de umidade do solo que pode favorecer a ocorrência de deslizamentos de terra mesmo na ausência de chuva.
O número poderia ser bem menor se o órgão estivesse mais bem preparado para lidar com ocorrências como essa, defende Pedro Côrtes, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP). “Em tese, municípios de médio e grande porte poderiam lidar com essas situações, mas o que temos verificado é que, em geral, isso não acontece”, disse.
Em poucas horas, choveu na região de Petrópolis 260 mm, superando a média histórica para todo o mês de fevereiro. Segundo a Defesa Civil local, foram 189 deslizamentos registrados e 229 ocorrências, com cerca de 50 casas atingidas. Atualmente, existem 372 pessoas desabrigadas ou desalojadas.
Com um histórico de deslizamentos de terra, a exemplo do que aconteceu em 2011, e um cenário de agravamento das chuvas mais intensas e localizadas, os órgãos de defesa da região serrana do Rio já deveriam ter as ferramentas e estratégias necessárias para enfrentar eventos extremos, defende Côrtes. “Claro que pode ocorrer uma chuva com intensidade imprevista, mas eu não considero que tenha sido o caso. Nós já vínhamos com ocorrência de chuvas intensas em dezembro na Bahia, em janeiro em Minas, no final de janeiro e início de fevereiro na região metropolitana de São Paulo. Isto é, já sabíamos que as chuvas vinham se manifestando com bastante intensidade”, disse em entrevista a ((o))eco.
Segundo o meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador-geral de Operação e Modelagem do Cemaden, de fato não existe forma de prever com antecedência uma chuva tão intensa e concentrada numa localidade específica. Ainda assim, o pesquisador ressalta que outros alertas haviam sido enviados à Defesa Civil nacional em dias anteriores.
Para o pesquisador Pedro Côrtes, da USP, o que faltou a Petrópolis, e o que falta ao Brasil, é uma política efetiva de prevenção. “Não temos uma cultura de prevenção. Claro que no Brasil há esse trabalho, a exemplo do que acontece na área da saúde, com o sistema de vacinação. Mas em relação aos desastres naturais, aos eventos climáticos extremos, é muito pouco o que se vê em prevenção. Normalmente o que temos é uma política reativa. Reagimos aos eventos e aí os prejuízos são enormes, não só materiais, mas também humanos”, diz.
Segundo Côrtes, os órgãos de defesa civil deveriam acompanhar com mais seriedade os boletins meteorológicos emitidos pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
A partir desses boletins, o ideal seria realizar análises de riscos de acordo com a realidade de cada município e, então, proceder com ações de prevenção, como reforço nas encostas e evacuação temporária de populações. “Realmente há um despreparo e uma falta de interesse dos políticos em abraçar essas causas”, diz.
Os deslizamentos de terra, enxurradas e enchentes que deixaram dezenas de pessoas mortas em Petrópolis (RJ) podem estar ligados a uma combinação de fatores, entre os quais ocupação desordenada, topografia do local – cravada em uma região de serra, e desmatamento.
Os possíveis “responsáveis” por mais uma tragédia no município foram levantados pelo professor Antônio Guerra, do Departamento de Geografia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ele estuda há 30 anos o comportamento de Petrópolis durante a temporada de chuva, que se acentua no verão.
“Na realidade não há um fator isoladamente que explique essas catástrofes. É claro que a chuva de alta intensidade e concentrada num período curto, como foi agora o caso de Petrópolis, onde choveu [o acumulado de] 259,8 mm em apenas seis horas, é um fator importante, mas a gente tem que levar em consideração também o mau uso do território”, disse.
“O desmatamento para essas construções, a falta de galerias pluviais ou entupidas muitas vezes, a falta de rede de esgoto, a densidade de construções, são muitas casas construídas em terrenos pequenos, então isso tudo seria uma combinação de fatores que proporciona esse tipo de catástrofe”, explica Guerra.
Questionado sobre qual a solução para evitar que novas vidas sejam perdidas, o professor ressaltou que apenas obras como a construção de muros de arrimo, galerias pluviais e bueiros se tornam insuficientes para conter deslizamentos e enchentes. Para ele, é preciso também deixar de construir em áreas com declividade muito acentuada e procurar vegetar alguns pontos anteriormente desmatados.
Guerra afirmou que o ocorrido em Petrópolis é uma situação recorrente, usando como exemplo os deslizamentos que resultaram em mortes em Franco da Rocha em São Paulo, no final de janeiro, além de outras cidades pelo país. “Tem que ser um projeto de médio e longo prazo. Não adianta fazer frases de efeito agora, bravatas, e depois esquecer tudo e esperar o próximo evento catastrófico.”
Análise semelhante à de Guerra foi feita pelo professor Matheus Martins, especialista em drenagem urbana e docente da Escola Politécnica da UFRJ. “A topografia da cidade de Petrópolis favorece muito o tipo de inundação que a cidade sofreu ontem. É uma região de encostas onde a água da chuva desce com velocidade. É similar com o que a gente vê nas cachoeiras, que o pessoal fala tromba d’água”.
Martins ressaltou que é de grande complexidade realizar obras para lidar com cheias, sendo fator primordial uma melhor ocupação do terreno, como avaliar quais as regiões com risco de deslizamento e inundação, e tentar diminuir ao máximo o número de pessoas expostas ao risco, como emitindo alertas para que as pessoas deixem os locais.
Fontes: ((o))eco, Estadão, Folha SP, G1.