As enchentes que assolam o Rio Grande do Sul reacenderam a discussão sobre o que autoridades do país têm feito para minimizar o impacto de tragédias climáticas. No Congresso, um levantamento feito por especialistas a pedido do GLOBO revela que ao menos 11 leis aprovadas na última década acabaram por reduzir a proteção ambiental. Seis delas flexibilizaram artigos do Código Florestal, aprovado em 2012, considerado um dos mais importantes marcos regulatórios para a preservação da vegetação nativa. A lista inclui ainda regras mais rígidas para demarcação de terras indígenas e facilitação da importação de agrotóxicos.
Para ambientalistas, o afrouxamento das normas tem facilitado o desmatamento, aumentando as emissões de carbono e favorecendo o aquecimento global. Parlamentares ligados à bancada ruralista, à frente de boa parte das iniciativas, por sua vez, contestam essa relação e veem uma tentativa de criminalização da atividade agropecuária no país.
Uma das medidas consideradas como recuo por especialistas foi a do projeto que permitiu a regularização de edifícios às margens de cursos d’água em áreas urbanas. A lei alterou o Código Florestal para atribuir aos municípios o dever de regulamentar as faixas de restrição à beira de rios, córregos, lagos e lagoas. A partir de então, cada governo local passou a definir o tamanho das faixas de preservação, com um limite mínimo de 15 metros. Pelas regras anteriores, esses locais eram considerados Áreas de Preservação Permanente (APPs) e sua extensão era determinada a partir da largura do curso d’água.
Margens de rios
Para Marcelo Dutra, do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), a mudança no dispositivo estimulou a construção nas margens de lugares como a Lagoa dos Patos e o Vale do São Gonçalo, em Pelotas (RS), inundados após as fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul.
— Assumimos o risco ao invadirmos os chamados pulso de inundação, verificado quando o corpo hídrico enche demais, sem perceber que isso representava uma prática ruim. Apesar de termos tido a impressão, há 12 anos, que tínhamos uma legislação das mais robustas e abrangentes, ela foi sendo dilapidada e degradada, sofrendo com a sucessiva retirada de normas importantes — afirma Dutra.
Um dos principais instrumentos implementados a partir do Código Florestal foi o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que possibilitaria fiscalizar as APPs e áreas de reserva legal existentes no país. O objetivo com o cadastro era criar uma base de dados para orientar as políticas públicas.
No entanto, 12 anos após a sanção da lei, a maioria dos registros sobre o uso da terra nas propriedades agrícolas feitos pelos produtores ainda não foi validada pelas autoridades estaduais. Em quatro ocasiões, o prazo para implantação da medida foi prorrogado.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, a situação de registros ativos no CAR com análise concluída é nula, segundo dados compilados pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora). No Brasil, do total de 7.442.163 imóveis cadastrados na plataforma, apenas 0,6% estão em conformidade com o Código Florestal.
— A bancada ruralista do Congresso historicamente pressiona pela flexibilização da legislação de proteção da vegetação nativa. (Avançam) contra regras que demandam licenças e outros atos autorizativos para afastar supostos entraves estabelecidos pela política ambiental — diz a urbanista e advogada Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.
Um cruzamento de dados realizado pelo GLOBO no site da Câmara e do Senado mostra que, desde 2012, foram propostos 2.287 projetos de lei sobre meio ambiente, o que representa uma média de 190 por ano. Do total, 41 tiveram sua tramitação concluída, ou seja, foram aprovados nas duas Casas.
Na avaliação do Observatório do Clima, em ao menos 11 desses casos, os textos flexibilizaram a preservação ambiental. Um levantamento da entidade mostra ainda que pelo menos outros 25 projetos de lei e três propostas de emenda à Constituição (PECs) ainda em tramitação no Congresso representam “ameaças a direitos socioambientais”. As medidas abarcam temas como grilagem, direitos indígenas e financiamento da política ambiental.
— É importante refletirmos que, na ocasião do chamado Código Florestal, em 2012, a ciência já nos avisava dos desastres climáticos, mas isso não estava no debate jurídico internacional como hoje. A legislação brasileira até tem bons instrumentos, mas sua aplicação está longe de ser a ideal — avalia o professor Pedro Abi-Eçab, da Faculdade Mackenzie Brasília.
Ex-presidente e hoje integrante da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), por sua vez, afirma que tratar as iniciativas aprovadas como prejudiciais ao meio ambiente é “erro de avaliação, oportunismo e demagogia”.
— Justamente quando estamos passando pelo pior período de uma catástrofe no Rio Grande do Sul, todos se arvoram a querer achar culpado por isso. Tivemos uma enchente semelhante àquela em 1941. Seria pelos mesmos motivos que eles apontam agora? Os culpados seriam o agro? Os projetos? Seria o efeito estufa? — disse o parlamentar.
Procurados, os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não comentaram o levantamento. A interlocutores, contudo, Lira já afirmou não ver relação entre a afrouxamento de leis ambientais e desastres climáticos e alega se tratar de um fenômeno global. O deputado tem adotado o entendimento de que não pode limitar a prerrogativa de um parlamentar de apresentar projeto e que, nem todo texto de flexibilização ambiental terá apoio para ser aprovado.
Fonte: O Globo.
21/01/2023REUTERS/Ueslei Marcelino.